por Jorge de Souza | nov 27, 2023
A cena sempre deixava os leigos apavorados. E os técnicos, eufóricos.
De repente, toda a parte da frente daquele estranho e fino navio, que mais parecia um charuto, começava a afundar, erguendo a popa, até ela ficar totalmente na vertical, só com a ponta do casco fora d´água, como uma recriação dos instantes finais do Titanic.
Mas, não. Não era um naufrágio – apenas a estranha rotina daquele estranho navio, a mais peculiar embarcação que já se viu no mar.
O Flip (iniciais de “Floating Instrument Platform”, embora “flip” – “virar” em inglês – também designasse a principal característica daquele esquisito navio) foi feito justamente para afundar quase que totalmente, e assim ajudar os oceanógrafos a estudar o mar.
Com um simples comando, o mar passava a invadir a parte frontal do casco (um grande cilindro oco, repleto de válvulas e compartimentos), e, com o peso da água entrando, o Flip começava a erguer a popa e mergulhar gradativamente no oceano, enquanto seus ocupantes tratavam de se locomover de um plano para outro, já que tudo dentro do navio ia ficando cada vez mais inclinando.
Até que, 20 minutos depois, quando a água já ocupava 80% dos seus 108 metros de comprimento do casco, a inundação estancava, e o navio passava a ficar espetado no mar, totalmente na vertical, só com a popa fora d´água, feito um periscópio, ou a ponta de um pilar submerso – e quase tão estável quanto um objeto fixo no fundo do mar.
O Flip, criado no final da década de 1950 por dois geniais engenheiros americanos, e inaugurado (com certa desconfiança) em 1962, a fim de atuar em pesquisas oceânicas, era um prodígio da engenharia naval.
Uma alternativa bem mais barata e viável do que os submarinos, para estudar as colunas de água oceânicas, abaixo da superfície. Era como um laboratório submerso. O mais original de todos, por sinal.
Contudo, mais interessante até do que a capacidade daquele navio de mudar da posição horizontal para a vertical no mar, era o que acontecia dentro dele, durante isso.
Com a transição, tudo o que estava assentado no piso do interior do navio (camas, mobiliário, instrumentos etc) passava a fazer parte das anteparas das cabines – e vice versa.
O chão virava parede, e o mastro, passarela. E os tripulantes tinham que migrar de um plano espacial para outro, durante a operação.
“A primeira vez que senti na pele o navio inclinando, até virar um poste no mar, pensei: isso não vai dar certo”, recorda Ed Childers, um dos primeiros tripulantes do Flip.
“Mas não é que o Flip operou por mais de 50 anos, sem nenhum acidente?”.
Por conta da sua incrível capacidade de rotacionar 90 graus, e de mergulhar no mar sem afundar, o Flip era equipado com uma série de recursos inimagináveis em um navio convencional.
Como escadas em forma de arco (que permitiam subir e descer qualquer que fosse o plano), duas portas por cômodo (uma delas, estranhamente, sempre fixada na parede), luminárias que migravam do teto para as laterais, dependendo da posição em que o navio se encontrava, e mobiliário instalados sobre roldanas, que giravam na medida que o casco inclinava.
Os banheiros tinham duas pias e dois vasos sanitários: um na horizontal, outro na vertical.
Um desavisado que entrasse no Flip, julgaria estar em um experimento sensorial, caminhando sobre paredes e pendurando suas roupas no chão.
Quando quase totalmente submerso, o Flip tanto podia ficar estático, atado à três pesadas âncoras, quanto flutuando e derivando junto com a correnteza, sem que isso afetasse a sua estabilidade, já que, pelo formato do seu casco, roliço feito um tubo, e mais largo na frente do que atrás, sua oscilação na superfície era mínima.
Mesmo sob a ação de ondas de cinco ou seis metros de altura, o Flip, quando na vertical, não variava mais do que meia polegada na superfície – como uma garrafa boiando no mar com líquido dentro.
E jamais tombava.
Para voltar à posição normal, bastava ao comandante fazer o processo inverso do mergulho, injetando ar comprimido no interior do casco – que, gradativamente, retornava à superfície.
O Flip foi um engenho surpreendente. Especialmente para algo projetado 70 anos atrás.
Durante 59 anos, o Flip, que fora construído para atender ao Instituto Americano de Pesquisas Navais, serviu a cientistas e oceanógrafos, atuando como laboratório avançado para pesquisas marítimas – e ponha avançado nisso…
A bordo dele, trabalhando em um navio quase de ponta-cabeça, pesquisadores desenvolveram inúmeros trabalhos e teorias sobre correntes marítimas, comportamento e canto das baleias, interações entre ar e mar, e especialmente avaliações acústicas oceânicas, já que, como não tinha motores (para movimentá-lo, era preciso rebocá-lo), o Flip não produzia nenhum ruído que pudesse atrapalhar as medições.
Uma vez fincando no oceano, como um gigantesco microfone flutuante (até pela forma inusitada que adquiria), o Flip era capaz de ficar praticamente parado na superfície, imune às oscilações, e oferecendo pouquíssima resistência aos ventos e ondulações – daí ter sido uma ferramenta tão valiosa para os pesquisadores.
“O Flip foi uma maravilha da engenharia e ajudou muito a humanidade na compreensão dos oceanos”, disse a diretora de um dos institutos para os quais ele atuou, o Scripps, da Universidade da Califórnia, Margaret Leinen, na comemoração dos 50 anos de atividade do navio, em 2012.
Quando isso aconteceu, o Flip, por sua capacidade de afundar sem que isso virasse uma tragédia (embora sempre arrancasse gritos horrorizados dos mal-informados), já havia virado atração na internet.
Por sua engenhosidade, durante décadas, o Flip participou de centenas de estudos científicos marinhos.
Alguns dos mais recorrentes, envolviam as ondulações oceânicas, especialmente as chamadas “ondas loucas”, ondas oceânicas de tamanho anormal, que surgem sem nenhum aviso e bem mais altas que as demais, na tentativa de descobrir um padrão que possibilitasse prevê-las.
E foi durante um desses estudos, que ocorreu o único incidente da história deste peculiar navio.
Em 1969, os ocupantes do Flip tiveram que ser resgatados no mar, após se jogarem na água, quando ondas com mais de 25 metros de altura (limite máximo para o qual ele fora projetado) passaram a bombardear a estrutura vertical do navio. Mas não houve vítimas.
O Flip seguiu sendo usado nas pesquisas sobre ondas, inclusive as “internas”, grandes massas de água que se movem abaixo da superfície, já ainda não inventaram nada melhor para isso do que um navio que afunda quase inteiro para “senti-las”.
Até então, medições desse tipo eram feitas por meio de barcos convencionais (o que, às vezes, resultava em desastres) ou através de plataformas de petróleo, fincadas no leito marinho – mas que, por isso mesmo, não ofereciam a mesma precisão nas avaliações.
Nenhum outro meio era capaz de estudar, de maneira inequívoca, o que de fato acontecia debaixo d´água.
Até que, nove anos depois, em 2021, já precário e necessitando de uma série de reparos, decidiu-se que o Flip seria aposentado.
Mas não.
Porque nunca houve um navio tão original quanto o Flip.
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por Jorge de Souza | nov 15, 2023
Na segunda metade da década de 1970, no auge da Guerra Fria entre Estados Unidos e União Soviética, um satélite espião americano sobrevoou uma base aérea russa e fotografou o que parecia ser um enorme avião sendo construído.
Mas ele não tinha semelhanças com os demais aviões.
Era enorme, mas tinha asas bem curtas.
E seus motores – quatro de cada lado, mais dois na cauda – ficavam junto à cabine do piloto, colados uns aos outros, formando uma espécie de segunda asa, à frente da principal – que, por sua vez, ao contrário dos aviões convencionais, não tinha motor algum.
Além disso, a parte de baixo da sua fuselagem tinha o formato de um casco de barco, com o intuito óbvio de flutuar na água.
Um veículo, sem dúvida, esquisito.
Mas, o que seria?
Um novo avião anfíbio?
Um enorme barco alado?
Ou um misto destas duas máquinas?
A confusão aumentou ainda mais quando o tal “veículo” ficou pronto e ganhou o símbolo da marinha russa pintado na fuselagem, embora o seu comando tenha sido entregue a pilotos da Força Aérea, como apuraram os espiões americanos, cada vez mais intrigados com aquele gigantesco engenho, de quase 100 metros de comprimento, que fora construída secretamente e classificada pelos russos como “segredo de estado”.
Até que no dia 16 de outubro de 1966, após um sigiloso e camuflado transporte marítimo (que para evitar satélites bisbilhoteiros só era feito à noite), desde a base aérea onde foi construído até às margens do Mar Cáspio, onde seria testado pela primeira vez, os americanos, finalmente, desvendaram o que era aquela estranha máquina: tratava-se de um ecranoplano, um tipo de aeronave com características bem peculiares, que, de fato, se aproximavam das embarcações.
Mas não era um simples hidroavião ou aerobarco.
Era um híbrido entre as duas coisas – uma máquina que voava praticamente rente à água, mas sem tocá-la.
Inventados pelo engenheiro naval soviético Alexeev Evgenievich, nos anos de 1950, os ecranoplanos, eram aeronaves que voavam a baixíssima altitude, rentes a qualquer terreno que fosse suficientemente plano (como as águas do mar, por exemplo), sustentadas apenas pelo “colchão de ar” formado pela pressão criada entre suas asas e a superfície logo abaixo delas – uma espécie de fenômeno oposto ao do “efeito-solo”, mais tarde adotado nos carros da Fórmula 1, só que, no caso, para aumentar a aderência deles ao asfalto.
O principal benefício disso era que, por voarem rentes ao solo, os ecranoplanos não eram detectados pelos radares – e isso era uma vantagem e tanto para um país em conflito com outro.
Outros ecranoplanos experimentais já haviam sido construídos por Evgenievich, na União Soviética.
Mas nenhum com tamanho porte.
Com 92 metros de comprimento e quase 500 toneladas de peso, aquele fabuloso engenho – na época, a maior aeronave do mundo – era capaz de transportar meia dúzia de mísseis e tropas inteiras, o que fez com que o governo soviético apostasse cegamente no projeto do seu super-avião que voava rente à água.
De tão superlativo, aquela espécie híbrida entre barco e avião, que os soviéticos batizaram com as inicias KM (de “Korabl Maket”, ou “Navio Modelo”, em russo – o que reforçava a sua vocação muito mais para o mar do que para o ar) ganhou outro nome entre os americanos: “Monstro do Cáspio”, numa referência direta ao seu porte mais que avantajado e aparecia um tanto bizarra.
O primeiro voo da estranha aeronave que só voava a míseros palmos da água – porque, se passasse disso, perderia sustentação e cairia -, aconteceu em 16 de outubro de 1966, durou pouco mais de 50 minutos, mas mostrou que o engenho de Evgenievich (que, contrariando o protocolo, estava a bordo no dia do teste) era viável, embora os pilotos tivessem que ficar atentos o tempo todo quanto a presença de barcos ou ondas na superfície – embora o “Monstro do Cáspio” também tivesse a capacidade de furá-las, desde que não fossem muito altas.
Quando em movimento, o gigantesco “Monstro do Cáspio” mais parecia um navio planando na superfície. Ou um enorme avião cargueiro prestes a desabar na água – nos dois casos, uma visão impressionante.
Os testes de aperfeiçoamento do ecranoplano KM no Mar Cáspio se estenderam por mais de 15 anos, até que, durante um deles, em 15 de dezembro de 1980, os pilotos não aplicaram a potência necessária na decolagem, a aeronave tocou a superfície do mar de maneira descontrolada, rodopiou, danificou parte da fuselagem e começou a encher de água.
Os ocupantes nada sofreram e foram socorridos em seguida.
Mas o KM acabou sendo abandonado no mar, afundou uma semana depois, e, pelo seu tamanho, não teve como ser resgatado.
Era o fim do “Monstro do Cáspio”, mas não dos projetos de Evgenievich, de fazer algo bem mais pesado que o ar voar rente ao mar.
Do que ele aprendeu com o KM, surgiu outro imenso ecranoplano: o Lun, de 74 metros de comprimento, que, no entanto, teve vida ainda mais curta e praticamente não passou da fase de testes – e sequer chegou a ser usado para fins militares.
Em 1991, com o colapso da União Soviética, o projeto dos ecranoplanos foi abandonado e o Lun confinado em um imenso hangar, de onde só saiu quase 30 anos depois, para um final melancólico.
Em 31 de julho de 2020, quando era rebocado ao longo do Mar Cáspio, rumo à cidade russa de Derbent, no Daguestão, onde viraria atração em um futuro parque de equipamentos militares, o Lun se desprendeu do comboio que o puxava (composto por nada menos que três rebocadores e dois navios de apoio), e encalhou em uma das praias desertas da região.
Moradores e equipes de resgate tentaram, de todas as formas, devolver o pesado veículo ao mar – que a própria Organização Marítima Internacional reconheceu como sendo um navio, não um avião -, mas seu tamanho avantajado falou mais alto.
E por ali ele ficou. Para sempre.
A única solução foi puxar a segunda versão do Monstro do Mar Cáspio para a areia da praia, a salvo das ondas que ameaçavam destruí-lo, e mudar o museu de lugar, instalando-o no local onde o único ecranoplano militar superlativo que resistiu ao tempo – e apenas o segundo a ser construído – jamais sairá.
Porque aviões não encalham. Mas barcos, sim.
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por Jorge de Souza | nov 8, 2023
Os Grandes Lagos Americanos, entre os Estados Unidos e o Canadá, não têm esse nome por acaso.
Juntos, eles concentram o maior volume de água doce represada do planeta e, nos dias de tempestades, nem de longe lembram a placidez habitual de um lago.
Ao contrário, por ficarem em uma região de clima inclemente no inverno, com ventos intensos e temperaturas congelantes, formam um dos mais duros cenários para se navegar com um barco.
Mesmo os grandes navios.
Como era o Edmund Fitzgerald.
Quando foi lançado, em junho de 1958, o cargueiro americano era o maior (e, por consequência, considerado o mais seguro) navio que já havia singrado as cinco gigantescas porções de água, que, interligadas, dão forma aos Grandes Lagos.
Custara cerca de US$ 8 milhões, passava dos 220 metros de comprimento e tinha casco de aço com uma polegada de espessura – uma precaução necessária frente às centenas de naufrágios que já haviam ocorrido naquelas águas.
O Edmund Fitzgerald fora construído para enfrentar as piores condições de navegação.
Podia enfrentar ventos com a intensidade de furacões e seu curioso casco, bem alto e com a casaria dividida em duas partes – a ponte de comando bem na proa e todo o restante na popa, com enormes paióis para carga ao centro – oferecia uma proteção extra contra as ondas.
Entre as pessoas que acreditavam que nada podia afetar o poderoso cargueiro estava o seu próprio comandante, o experiente capitão americano Ernest McSorley.
Com 63 anos de idade e mais de 700 travessias realizadas com o Edmund Fitzgerald, ele confiava cegamente no seu barco.
Por isso, não temia em forçá-lo.
Mesmo sob as piores condições, o navio do comandante McSorley sempre se mostrava confiável.
Não havia, portanto, nenhum motivo para preocupações antes daquela rotineira travessia entre o porto de Superior e a cidade de Detroit, com uma carga de 26 000 toneladas de minério, que seguiam dentro dos paióis centrais, tampados com placas de aço presas por travas rosqueáveis.
Nem mesmo o fato de ser início do inverno, época já sujeita a tempestades, incomodava o capitão McSorley, cuja tripulação, naquela viagem, somava 26 pessoas.
No dia da partida, 9 de novembro de 1975, o clima era até agradável para os padrões da região.
McSorley já havia checado a previsão do tempo, e, embora houvesse uma mudança meteorológica a caminho, ainda assim aquela travessia do Lago Superior, o maior de todos os lagos, prometia ser tranquila.
A previsão indicava ventos com intensidades entre 8 e 16 nós, aumentando, depois, para 23 – ainda assim, bem abaixo do que o Edmund Fitzgerald era capaz de enfrentar.
Só que os números verdadeiros seriam outros.
E bem piores do que os previstos.
No início da tarde do dia seguinte, quando o Edmund Fitzgerald já navegava longe, sendo acompanhado a certa distância pelo também cargueiro Arthur M. Anderson, os barômetros despencaram e começou a nevar forte – sinal de que uma tempestade se aproximava.
Não demorou muito e a visibilidade caiu para míseros metros, ao mesmo tempo em que os ventos se tornaram intensos, erguendo grandes ondas no imenso lago.
As ondas passaram a varrer a superfície do lago com incrível velocidade e criavam abismos entre suas cristas.
A bordo do Edmund Fitzgerald a tripulação se desdobrava para controlar as rotações do hélice, para que, quando a popa do navio saísse fora d´água, o giro do motor não ultrapassasse o limite máximo.
Também era preciso evitar que o casco ficasse suspenso no ar, no vão entre duas ondas, porque isso poderia comprometê-lo, já que era bem comprido.
Mesmo para um navio de grande porte, navegar sob aquelas condições não era nada agradável.
Por isso, o capitão McSorley chamou o comandante do Arthur M. Anderson pelo rádio, e propôs que ambos se abrigassem atrás de uma ilha que havia não muito distante de onde estavam, o que foi aceito de imediato.
A ilha oferecia boa proteção contra os ventos daquele quadrante.
Mas, para chegar lá, era preciso, primeiro, atravessar um famoso e perigoso estreito, onde a profundidade não passava dos doze metros – daí o seu nome: Six (Seis) Fathom, uma antiga forma de medida.
Era, no entanto, o bastante para o Edmund Fitzgerald cruzar o estreito sem maiores problemas, como já havia feito diversas vezes.
O problema é que, naquele dia, as ondas estavam tão altas que sugavam periodicamente as águas do estreito, tornando-o subitamente bem mais raso.
E foi em um destes momentos que o fundo do casco do Edmund Fitzgerald tocou as rochas pontiagudas que haviam submersas no fundo do estreito, abrindo uma fenda, por onde, imediatamente, começou a entrar água.
Muita água.
Às 15h30 daquela tempestuosa tarde, o capitão McSorley chamou novamente o comandante do Arthur M. Anderson, algumas milhas atrás, para informar o ocorrido e avisar que também havia perdido duas tampas de aço dos paióis, o que tornava a situação ainda mais crítica, porque a água estava entrando por baixo e, também, por cima do casco.
E completou dizendo que, apesar da tempestade, iria seguir em frente, agora à toda velocidade, para tentar chegar o mais rápido possível à localidade de Whitefish, nas margens do lago, a apenas a 18 milhas de distância.
Mas uma perversa combinação de infortúnios fez com que o Edmund Fitzgerald jamais chegasse lá.
Meia hora depois daquele contato, o capitão McSorley voltou a chamar o colega do outro navio, relatando, agora, outro problema: o radar do Edmund Fitzgerald havia parado de funcionar – e a má visibilidade causada pela tempestade não permitia enxergar nada à frente.
Ele, então, pediu que o Arthur M. Anderson se aproximasse, a fim de compartilhar as informações do seu radar.
Mas, para isso, precisou diminuir a marcha, já que o alcance do radar do outro navio era limitado a pouco mais de oito milhas.
Navegando mais lentamente, a inundação do Edmund Fitzgerald só fez aumentar de intensidade.
Mesmo usando todas as bombas do casco, capazes de expelir a colossal quantidade de 28 toneladas de água por minuto, o casco do Edmund Fitzgerald foi ficando cada vez mais cheio d´água.
Ainda assim, no entanto, seguiu avançando, às cegas e lentamente, sob o bombardeio das ondas, enquanto rezava pela aproximação do outro navio, porque sem o compartilhamento do radar, McSorley não conseguiria achar o porto de Whitefish.
A agonia durou até o cair da noite.
E, junto com ela, veio o pior de tudo.
Às 19h15, logo após voltar a se comunicar com o cargueiro avariado, naquela que viria a se tornar a última mensagem enviada pelo Edmund Fitzgerald (na qual o comandante McSorley disse apenas que “estavam se segurando como podiam”), o capitão do Arthur M. Anderson sentiu o seu navio se erguer subitamente no ar, como se algo gigantesco tivesse passado por baixo dele.
Em seguida, sentiu isso de novo.
Eram duas ondas monstruosas que haviam passado pelo seu navio, bem maiores do que as habituais.
As duas montanhas de água, fora dos padrões mesmo para uma região famosa pela intensidade de suas tormentas, nada causaram ao Arthur M. Anderson, além de um apavorante frio na espinha dos seus ocupantes.
Mas deixaram um rastro de iminente tragédia, porque avançaram justamente na direção onde o Edmund Fitzgerald tentava, a duras penas, se manter flutuando.
O resultado, ao que tudo indica, não poderia ter sido mais trágico: em questão de minutos, o Edmund Fitzgerald sumiu da tela do radar do Arthur M. Anderson, muito possivelmente após ser engolido inteiro pelas águas em convulsão do lago.
Era o fim do maior navio dos Grandes Lagos e início de um enigma que jamais teve uma resposta: o que fez o Edmund Fitzgerald afundar tão subitamente, decretando a morte de seus 26 tripulantes?
O motivo mais provável é que tenham sido aquelas duas ondas gigantescas, em sequência – a primeira teria erguido a popa do navio a níveis absurdos, e a segunda acelerado a descida do cargueiro de encontro a primeira, mergulhando o navio no lago feito um míssel.
O impacto com a onda também teria partido o comprido casco ao meio, fazendo com que o cargueiro descesse para o fundo dividido em duas partes – e a da popa, onde estava a maior parte da tripulação, virada de cabeça para baixo, o que pode ter feito com que alguns tripulantes tenham tido uma morte lenta e sufocante.
Nenhum pedido de socorro foi enviado.
Certamente, porque não deu tempo.
A busca inicial por sobreviventes foi realizada pelo próprio Arthur M. Anderson.
Mas não trouxe resultados.
Logo, a despeito do mau tempo, chegaram outros navios, convocados pelo comandante do cargueiro.
E, também, nada foi encontrado.
Só quatro dias mais tarde, um avião da Marinha dos Estados Unidos, equipado com um aparelho detector de anomalias magnéticas submersas, encontrou as duas partes do Edmund Fitzgerald, separadas por mais de 70 metros de distância, a 160 metros de profundidade.
Quando isso aconteceu, as teorias sobre o naufrágio mais famoso da história dos Grandes Lagos já haviam se multiplicado e permitido todo tipo de especulação.
Uma delas pregava que o navio, de tão grande e comprido, havia sofrido um rompimento estrutural causado pelo fato de a junção das placas de aço do seu casco terem sido feitas com solda, e não rebites, o que o teria tornado excessivamente rígido.
Outra tese defendia que algumas tampas dos compartimentos de carga haviam se soltado, permitindo a inundação dos compartimentos de carga, como já havia acontecido com dois deles no início da travessia, pela má fixação das travas, que não teriam sido rosqueadas até o fim – como o comandante do Edmund Fitzgerald contara ao seu colega do Arthur M. Anderson pelo rádio.
E até o sabido hábito do capitão McSorley de forçar o seu navio ao máximo, por confiar na resistência dele, foi usado para acusá-lo, postumamente, de negligência irresponsável.
No entanto, a tese mais aceita sempre foi a das duas ondas em sequência, como relatado pelo comandante do Arthur M. Anderson, que jamais se perdoou por não ter chegado a tempo ao local onde o Edmund Fitzgerald o aguardava, navegando em ritmo lento – o que, certamente, também contribuiu para a tragédia, porque impediu o navio de chegar a margem antes de ser atingido pelas ondas.
Oficialmente, porém, a causa do naufrágio jamais foi decretada, já que a única parte resgatada do navio foi o seu sino, hoje principal peça do Museu dos Naufrágios dos Grandes Lagos, em Whitefish, no estado de Michigan – mesmo local onde o Edmund Fitzgerald tentou desesperadamente chegar naquela noite de 1975.
E onde, desde então, todo dia 10 de novembro, um farol emite melancólicos fachos de luzes em direção ao horizonte, em homenagem às vítimas da mais famosa tragédia daquele conjunto de lagos, que, de plácidos, não têm nada.
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por Jorge de Souza | out 18, 2023
Em abril de 2021, o milionário e aventureiro americano Victor Vescovo, então com 55 anos, acrescentou mais uma façanha ao seu currículo de grandes feitos.
A bordo de um mini-submarino que ele mesmo mandou construir, ao custo de quase 300 milhões de reais, desceu até o mais profundo naufrágio até hoje conhecido, o do destroier americano USS Johnston, afundado pelos japoneses durante a Segunda Guerra Mundial, que repousa no fundo do mar das Filipinas, a impressionantes 6 456 metros de profundidades.
Nunca ninguém havia feito isso.
Mas Vescovo fez, apenas pelo prazer que sente em visitar as profundezas dos oceanos, e assim, de alguma maneira, ajudar a ciência – além de torná-lo ainda mais famoso, é claro.
“Encontrei o navio com suas armas apontadas para a mesma direção, o que significa que ele afundou disparando contra os inimigos”, disse Vescovo, na ocasião.
Além de ser o naufrágio mais profundo do mundo – pelo menos entre os conhecidos -, o USS Johnston foi um navio emblemático, porque, na época em que foi afundado, era comandado por Ernest Evans, cujos pais foram índios cherokees, e que se tornou o primeiro nativo 100% americano a comandar um navio de guerra da Marinha dos Estados Unidos.
Ao receber a incumbência de comandar o USS Johnston, Evans, que também morreu no ataque, juntamente com outros 185 dos 327 tripulantes do navio, havia prometido lutar até a morte, o que de fato fez, aos 36 anos de idade.
Por isso, recebeu, postumamente, a Medalha de Honra, a mais alta honraria da Marinha Americana.
Para visitar o atual naufrágio mais profundo do mundo, Victor Vescovo usou o mini-submarino DSV Limiting Factor, que tem casco de titânio com nove centímetros de espessura, a fim de suportar a impressionante pressão das grandes profundezas.
Foi o mesmo submarino que ele usou para realizar aquela que, até hoje, foi sua maior façanha.
Entre o final de 2018 e meados de 2019, Vescovo mergulhou, sozinho, nos cinco pontos mais profundos dos cinco oceanos do mundo, incluindo o mais profundo ponto do planeta: a Fossa das Marianas, no Oceano Pacífico, quando chegou a impressionantes 10 924 metros de profundidade.
O feito lhe valeu o apelido de “Senhor das Profundezas” e a entrada no Livro do Recordes, como autor do mergulho mais profundo do mundo, embora sua marca tenha sido contestada pelo diretor de cinema James Cameron, também um apaixonado pelas grandes profundezas e o primeiro homem a visitar o Titanic no fundo do mar, navio que ele ajudou a eternizar no cinema.
Cameron havia mergulhado na mesma Fossa das Marianas um pouco antes de Vescovo, e tocou o fundo do mar a 10 908 metros de profundidade – 16 metros a menos que a marca que Vescovo disse ter atingido.
Na ocasião, chamuscado pela fogueira das vaidades que passou a arder entre os dois exploradores submarinos, Cameron alfinetou o milionário americano.
“Ele não pode ter atingido um ponto que não existe”.
Mas a polêmica só fez aumentar a popularidade de Vescovo entre os exploradores modernos.
Trata-se de um aventureiro nato.
Vescovo já caminhou até os dois polos magnéticos do planeta, o Polo Sul e o Polo Norte, e escalou as sete maiores montanhas do mundo, incluindo a mais alta de todas, o Monte Everest.
Com isso, após descer ao ponto mais profundo dos oceanos, tornou-se a única pessoa do mundo que já esteve nos dois pontos mais opostos do planeta: o mais alto e o mais baixo.
“Sempre gostei de desafios”, resume o americano, que já planeja outras incursões mar adentro.
Mas, o que há nas profundezas dos oceanos?
“Silêncio. Um relaxante silêncio”, contou Vescovo, ao concluir a descida nas Fossas Marianas, em 2019.
“Lá embaixo, a escuridão é total e o silêncio, absoluto. É um ambiente que traz muita paz”, disse o explorador, que, na ocasião, se tornou a quarta pessoa a descer até o ponto mais profundo do planeta.
Os dois primeiros foram o americano Don Walsh e o francês Jacques Picard, que, em 1960, durante uma expedição promovida pela Marinha Americana, chegaram ao fundo da Fossa das Marianas a bordo de um batiscafo, uma espécie de avô dos atuais mini-submarinos, e que funcionava feito uma espécie de balão ao contrário.
Mas os dois pouco viram, porque, sem câmeras e com uma única janelinha do tamanho de uma moeda, praticamente não enxergaram nada.
Mesmo assim, visualizaram uma nova espécie de peixe, quase transparente, e comprovaram que mesmo no ponto mais inóspito e profundo do planeta há vida.
Foi a maior herança deixada por aquele histórico mergulho, 63 anos atrás.
Já Vescovo conta com a ajuda da alta tecnologia e nenhum problema financeiro para seguir adiante com o projeto continuar mergulhando em pontos dos oceanos onde ninguém jamais esteve, aumentando assim ainda mais a coleção de feitos do cada vez mais famoso Senhor das Profundezas.
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“Leiam. É muito bom!”
André Cavallari, leitor
por Jorge de Souza | out 18, 2023
O mergulho no mar mais longo da História aconteceu em setembro de 2005, na ilha italiana de Ponza.
O casal de mergulhadores italianos, Stefano Baresi, então com 37 anos, e Stefania Mensa, de 29, passou nada menos que dez dias consecutivos debaixo d´água, durante um experimento para avaliar as reações do organismo humano aos mergulhos prolongados.
Eles ficaram um total de 240 horas submersos, ligados à superfície apenas por mangueiras de ar.
Para se alimentar, usavam um batiscafo estacionado um pouco acima deles, a oito metros de profundidade, e, para dormir, inflavam as roupas de borracha feito bexigas, mas eram contidos por redes submersas, para não subirem involuntariamente à superfície.
No fundo do mar, tinham cadeiras e algum mobiliário fixo, e só saiam de lá por alguns minutos ao dia, para testes de saúde e necessidades fisiológicas, dentro do batiscafo.
“À noite, sempre sonhávamos que o ar estava acabando”, brincou Stefania, ao final da curiosa experiência.
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“Sensacional! Difícil parar de ler”.
Amyr Klink, navegador
“Leitura rápida, que prende o leitor”.
Manoel Júnior, leitor
“Um achado! Devorei numa só tacada”.
Rondon de Castro, leitor
“Leiam. É muito bom!”
André Cavallari, leitor
por Jorge de Souza | set 27, 2023
A bola, rosa choque, como convém a situações de mau gosto, era arremessada para dentro do tanque e, antes mesmo de tocar a água, devolvida, com uma certeira cabeçada.
A plateia, então, batia palmas.
Surgia, em seguida, um ridículo chapéu de palha, que também ia parar dentro d´água, onde era rapidamente vestido pelo artista, que com ele passava a desfilar em círculos, diante de um punhado de bocas abertas.
O próximo ato era com uma boneca – e a patetice continuava.
Um, dois, três…, e a pseudocriança já estava “salva” na margem do tanque que servia de jaula para o autor daquela façanha.
Por fim, ele executava uma série de piruetas, antes de receber a sua mais que merecida recompensa: uma sardinha descongelada.
Foi assim diversas vezes por dia, todos os dias, durante anos a fio.
Até que, um dia, a torturante rotina de Flipper, o último golfinho em cativeiro que o Brasil teve, começou, finalmente, a mudar.
Mas não necessariamente para muito melhor.
Em julho de 1967, o município de São Vicente, no litoral de São Paulo, ganhou uma atração turística que logo se tornaria a principal da cidade: o Oceanarium, uma espécie de circo marinho com um tanque de água salgada de 12 metros de diâmetro por 5 de profundidade, no qual aconteciam apresentações de focas e golfinhos amestrados.
Diversos animais ali se apresentaram, mas poucos sobreviveram por muito tempo naquele acanhado cativeiro.
Foi quando o dono do empreendimento, o francês Roland Marc Degret, incomodado com a excessiva rotatividade de animais – o que implicava em despesas frequentes para treiná-los – decidiu encomendar um novo golfinho para os espetáculos.
Mas com uma ressalva: teria que ser um filhote, porque, assim sendo, além de o transporte do animal até o tanque se tornar mais fácil, o investimento no seu treinamento valeria mais a pena, já que ele viveria por mais tempo – embora não muito, porque estudos já indicavam que, preso em cativeiro, a vida média de um golfinho girava em torno de apenas 12 anos, contra de 30 a 50 quando solto na natureza.
Degret montou uma pequena equipe e rumou para o local da costa brasileira de mais fácil contato com golfinhos da espécie nariz de garrafa, os preferidos em shows do gênero: o canal de acesso ao porto da cidade de Laguna, no litoral de Santa Catarina, onde havia diversos grupos desses golfinhos, lá chamados de “botos”.
Em Laguna, o empresário contratou um velho pescador local, Euclides Nunes, o Tido, para o serviço de captura de um filhote, entre os botos que habitavam o canal.
O escolhido foi um jovem macho, então com cerca de dois anos de idade – fase da vida em que começava a não mais depender da mãe, uma fêmea chamada “Dolores”, bastante famosa entre os pescadores da cidade, porque participava ativamente dos cercos aos cardumes de peixes, encurralando-os entre as redes, fenômeno típico da cidade.
Por conta disso, o filhote já semi-independente de Dolores seria uma presa relativamente fácil.
E foi mesmo – embora sua mãe tenha ficado rondando, desesperada, o cerco montado pelo pescador para capturar o filhote.
Em seguida, na calada da noite, o animal foi sedado, colocado na caçamba de uma picape revestida com uma lona e um palmo de água e levado para São Vicente, a quase 1 000 quilômetros de distância.
Era início de 1984, e começava ali o martírio do futuro golfinho “Flipper”, assim batizado porque este era o nome do mais famoso seriado infanto-juvenil da televisão, nos anos de 1970.
O objetivo era gerar confusão na cabeça das crianças, que imaginariam estar vendo, no tosco aquário de São Vicente, o famoso golfinho da TV americana.
O sucesso foi imediato.
Rapidamente, às custas de muitas punições e sofrimentos, o animal foi treinado a dar saltos, piruetas, empurrar bolas e bonecas com o bico, nadar de óculos escuros, cacarejar feito uma galinha e condicionado a fazer as coisas mais estúpidas, em troca de comida.
E virou a principal estrela da cidade.
Nem mesmo o ritmo de diversos shows por dia dava conta da quantidade de pessoas queriam ver de perto o “Flipper brasileiro”, nadando eternamente em círculos, naquele acanhado tanque de cimento, menor que uma quadra de vôlei – um sofrimento perversamente mascarado pela expressão facial dos golfinhos, que parecem estar sempre sorrindo.
Foram nove anos de cárcere fechado, obrigado a trabalhos forçados, diversas vezes por dia.
Até que, em 1991, sete anos após a captura do golfinho – e logo após o responsável pelo ato ter enriquecido e vendido o negócio para outro empresário da cidade -, uma ação pública, movida pelo ambientalista Márcio Augelli, então diretor de uma entidade de proteção de botos amazônicos, foi impetrada na justiça, pedindo a devolução do golfinho-espetáculo ao mar, com base na primeira lei brasileira de proteção animal, criada pouco antes.
Na ocasião, o juiz que julgou o caso não acatou os argumentos do ambientalista, e manteve o golfinho sob a guarda do empresário. Mas, com base em evidências de maus tratos, mandou fechar o Oceanarium e proibiu os espetáculos.
Foi ainda pior para o golfinho solitário.
Com o aquário fechado e sem o lucro dos ingressos vendidos à plateia, a vida de Flipper se tornou ainda mais sombria.
Sem treinadores nem cuidadores, o animal foi praticamente abandonado e passou a viver em um tanque cada vez mais imundo e insalubre, o que levou o ambientalista Augelli a agir novamente – desta vez, em uma esfera internacional.
A partir da denúncia feita por uma entidade que ele mesmo ajudou a criar,
a bem intencionada Associação dos Amigos do Golfinho Flipper, a WSPA – World Society for the Protection of Animals, maior sociedade protetora dos direitos animais no mundo foi acionada, e seus advogados recorreram, uma vez mais, à justiça brasileira, pleiteando a soltura do animal – o que, finalmente, foi acatado.
Quando isso aconteceu, e a justiça finalmente decretou a interdição dos shows, Flipper passava os dias e noites apático, visivelmente deprimido, boiado na superfície à espera de alguma companhia (o que lhe rendeu doloridas queimaduras de sol no dorso do corpo), dentro de um tanque de água cujo filtro estava quebrado, e, por conta disso, com uma espessa camada de fezes acumuladas no fundo – ele já nadava praticamente no próprio cocô.
Para disfarçar o problema, o dono do local mandava aplicar cloro na água, o que rendeu ao golfinho uma severa irritação nos olhos.
Além de conseguir judicialmente a devolução de Flipper ao mar (desde que arcando com todos os custos da operação, o que não deixou de ser uma boa notícia para o dono do então falido Oceanarium), a WSPA também contratou os serviços de um especialista na reabilitação de seres marinhos para a vida na natureza: o americano Richard Barry O´Feldman, mais conhecido como Ric O´Barry, um ex-treinador de golfinhos para espetáculos, que dizia ter “mudado de lado”, ao testemunhar a morte – segundo ele, por suicídio, ao se arremessar de encontro às paredes do aquário – de um dos animais que ele amestrava, no Seaquarium de Miami.
Saudado como o “salvador de Flipper”, O´Barry – que, no passado, também havia ajudado a treinar os cinco animais homônimos utilizados no famoso seriado – chegou ao Brasil sob as luzes dos holofotes, que ele tanto apreciava.
Suas primeiras medidas, no entanto, foram coerentes: mandou trocar toda a água do tanque, restaurou o filtro, planejou detalhes técnicos para o transporte do animal (sedativos, helicóptero, caixa úmida e uma maca forrada com uma espessa camada de espuma, para que os órgãos internos do golfinho não fossem esmagados pelos seus próprios 250 quilos de peso), e viajou para conhecer o local onde a soltura aconteceria: o próprio canal de acesso ao porto de Laguna, onde Flipper havia sido capturado, nove anos antes.
Ali, O´Barry mandou construir uma espécie de cercado, em uma das margens do canal, onde Flipper seria “reeducado à vida selvagem”, o que, na prática, significava apenas reensiná-lo a capturar o próprio alimento.
Em seguida, o americano retornou à São Vicente, para comandar a operação de remoção do animal.
Na despedida de Flipper do seu tanque-cativeiro, no dia 17 de janeiro de 1993, perto de 5 000 pessoas se aglomeraram diante do Oceanarium da cidade, para dar adeus ao golfinho que tanto os divertira naqueles patéticos espetáculos.
Algumas crianças até choravam, enquanto O´Barry se dividia entre entrevistas aos repórteres, poses para os fotógrafos, e uma ou outra ordem aos seus auxiliares.
No auge do espetáculo em que se transformara a remoção do animal, um grande helicóptero pousou bem ao lado do tanque, e Flipper, já sedado (e após receber a tatuagem de uma bandeira do Brasil na sua nadadeira dorsal, a fim de facilitar sua identificação quando fosse solto no mar), foi colocado sobre a maca e alocado dentro de uma espécie de caixa com água, para que sua pele não ressecasse durante a viagem.
Mas, na hora de embarcar, descobriu-se que a caixa era grande demais para a largura da porta da aeronave.
A solução foi cortar, ali mesmo, um pedaço da caixa, o que fez com que a operação completa levasse mais de duas horas.
Mas, no final, deu tudo certo.
Quando Flipper voltou a si, já estava dentro do cercado construído no canal do porto de Laguna, onde deveria passar um bom tempo, sendo treinado pelo americano para voltar a caçar o próprio alimento – um processo naturalmente lento, mas fundamental para garantir a sua sobrevivência futura.
Ocasionalmente, também passou a ser visitado, pelo outro lado da cerca, por outros botos, ocasiões em que Flipper emitia a sua “identificação”, um sinal sonoro agudo, que serve para os golfinhos se “apresentarem” uns aos outros.
Mas nunca ficou claro se eles pertenciam ao seu grupo familiar (já que, naquela época, a mãe de Flipper, Dolores, bem como seus irmãos, ainda estavam vivos) ou se eram apenas animais defendendo o seu território contra aquele “intruso” recém-chegado.
O´Barry começou a readaptação oferecendo peixes mortos à Flipper, como no acontecia no Oceanarium, uma vez que, após tantos anos de confinamento, ele havia autodesativado o seu sonar, capacidade que permite aos golfinhos se localizar e encontrar alimento no mar.
No tanque, a pouca distância entre o animal e as paredes fazia com que o som emitido por ele retornasse de forma violenta, o que o levou o golfinho a parar de usar o recurso.
Biólogos e veterinários acreditavam que aquela perda seria irreversível.
Mas eles estavam errados.
Logo, Flipper voltou a usar o seu sonar e, graças a isso, passou a detectar a presença de peixes vivos na água – quer dizer, quase isso, porque a princípio O´Barry atirava apenas peixes quase mortos e bastante lentos, a fim de se tornarem presas fáceis.
Na medida em que Flipper foi recuperando suas habilidades predadoras e fortalecendo os músculos atrofiados pelas limitações do tanque, o americano, já visivelmente incomodado com sua permanência em Laguna (e, principalmente, com os atrasos nos pagamentos feitos pela WSPA), passou a acelerar o processo de reintrodução do golfinho no mar.
Até que anunciou que já o considerava pronto para ser solto – uma decisão claramente precipitada, uma vez apenas 43 dias haviam se passado desde que Flipper saíra do cativeiro.
No dia escolhido para a soltura, diante de outra grande platéia e diversas câmeras de TV, O´Barry entrou na água, nadou até o cercado, removeu parte da cerca e, sempre seguido por Flipper, passou para o outro lado.
Houve uma chuva de aplausos.
Mas, a princípio, o golfinho ficou apenas indo e vindo na direção do cercado.
O americano saiu da água comemorando, e disse aos repórteres que aquele comportamento era normal, e que Flipper ficaria nas imediações do canal, até ser novamente aceito pelos grupos de botos da cidade.
Em seguida, fez as malas e foi embora.
Para sempre.
Durante as duas semanas seguintes, a previsão de Ric O´Barry, de fato, se confirmou: Flipper, facilmente identificável graças a uma marcação feita na sua nadadeira dorsal, com o formato da bandeira do Brasil, pouco antes da soltura, era visto com frequência na região, tentando interagir com os demais botos.
Mas, após isso, foi embora dali.
Dias depois, foi visto a quase 100 quilômetros dali, com alguns arranhões pelo corpo, sinal de que andara tendo encontros não muito amistosos com outros da sua espécie – ou que havia sido rechaçado pelos botos de Laguna, daí ter ido embora do canal.
Mais tarde, para surpresa dos especialistas, apareceu, sozinho – comportamento incomum entre os golfinhos -, na mesma região de São Vicente, a quase 1 000 quilômetros de distância, o que levou parte dos moradores da cidade a festejar que “Flipper havia voltado para casa” – e alguns chegaram mesmo a pensar em recapturá-lo.
Mas Flipper sumiu novamente.
Um ano depois, voltou a ser visto – sempre sozinho – naquela mesma faixa de mar do litoral paulista, para então só reaparecer no final de 1995, no interior da baía de Paranaguá, a mais de 400 quilômetros de distância tanto de São Vicente quanto de Laguna, onde nunca mais foi avistado.
Foi a última vez que se teve notícias do golfinho mais famoso do Brasil, menos de três anos após ele ser devolvido à natureza – e a maneira como isso foi feito contribuiu decisivamente para o semi-fracasso da operação.
Tivesse Flipper passado por um processo mais lento e paciente de readaptação, talvez estivesse nadando até hoje no mar da região – o que, pelo menos matematicamente, pela sua idade, ainda seria possível.
Mas ele nunca mais foi avistado, nem seu corpo jamais foi encontrado.
O mais provável é que Flipper tenha morrido logo após aquela última avistagem, baía de Paranaguá, vítima de fraqueza, doença, rejeição, depressão ou ataque de algum predador, quando ainda era relativamente jovem para um golfinho adulto.
Como consolo ficou apenas o fato de que, seja lá o que tenha ocorrido, aconteceu quando ele já estava solto na natureza, e não preso dentro de um tanque de concreto.
No infame aquário de São Vicente, o Flipper brasileiro, Último golfinho-escravo do país (depois dele, os espetáculos do gênero foram proibidos em todo o Brasil), poderia ter vivido mais tempo.
Mas privado do bem mais precioso a todos seres vivos: a liberdade.
Olhando por este prisma, talvez tenha valido a pena.
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