A cena sempre deixava os leigos apavorados. E os técnicos, eufóricos.

De repente, toda a parte da frente daquele estranho e fino navio, que mais parecia um charuto, começava a afundar, erguendo a popa, até ela ficar totalmente na vertical, só com a ponta do casco fora d´água, como uma recriação dos instantes finais do Titanic.

Mas, não. Não era um naufrágio – apenas a estranha rotina daquele estranho navio, a mais peculiar embarcação que já se viu no mar.

O Flip (iniciais de “Floating Instrument Platform”, embora “flip” – “virar” em inglês – também designasse a principal característica daquele esquisito navio) foi feito justamente para afundar quase que totalmente, e assim ajudar os oceanógrafos a estudar o mar.

Com um simples comando, o mar passava a invadir a parte frontal do casco (um grande cilindro oco, repleto de válvulas e compartimentos), e, com o peso da água entrando, o Flip começava a erguer a popa e mergulhar gradativamente no oceano, enquanto seus ocupantes tratavam de se locomover de um plano para outro, já que tudo dentro do navio ia ficando cada vez mais inclinando.

Até que, 20 minutos depois, quando a água já ocupava 80% dos seus 108 metros de comprimento do casco, a inundação estancava, e o navio passava a ficar espetado no mar, totalmente na vertical, só com a popa fora d´água, feito um periscópio, ou a ponta de um pilar submerso – e quase tão estável quanto um objeto fixo no fundo do mar.

O Flip, criado no final da década de 1950 por dois geniais engenheiros americanos, e inaugurado (com certa desconfiança) em 1962, a fim de atuar em pesquisas oceânicas, era um prodígio da engenharia naval.

Uma alternativa bem mais barata e viável do que os submarinos, para estudar as colunas de água oceânicas, abaixo da superfície. Era como um laboratório submerso. O mais original de todos, por sinal.

Contudo, mais interessante até do que a capacidade daquele navio de mudar da posição horizontal para a vertical no mar, era o que acontecia dentro dele, durante isso.

Com a transição, tudo o que estava assentado no piso do interior do navio (camas, mobiliário, instrumentos etc) passava a fazer parte das anteparas das cabines – e vice versa.

O chão virava parede, e o mastro, passarela. E os tripulantes tinham que migrar de um plano espacial para outro, durante a operação.

“A primeira vez que senti na pele o navio inclinando, até virar um poste no mar, pensei: isso não vai dar certo”, recorda Ed Childers, um dos primeiros tripulantes do Flip.

“Mas não é que o Flip operou por mais de 50 anos, sem nenhum acidente?”.

Por conta da sua incrível capacidade de rotacionar 90 graus, e de mergulhar no mar sem afundar, o Flip era equipado com uma série de recursos inimagináveis em um navio convencional.

Como escadas em forma de arco (que permitiam subir e descer qualquer que fosse o plano), duas portas por cômodo (uma delas, estranhamente, sempre fixada na parede), luminárias que migravam do teto para as laterais, dependendo da posição em que o navio se encontrava, e mobiliário instalados sobre roldanas, que giravam na medida que o casco inclinava.

Os banheiros tinham duas pias e dois vasos sanitários: um na horizontal, outro na vertical.

Um desavisado que entrasse no Flip, julgaria estar em um experimento sensorial, caminhando sobre paredes e pendurando suas roupas no chão.

Quando quase totalmente submerso, o Flip tanto podia ficar estático, atado à três pesadas âncoras, quanto flutuando e derivando junto com a correnteza, sem que isso afetasse a sua estabilidade, já que, pelo formato do seu casco, roliço feito um tubo, e mais largo na frente do que atrás, sua oscilação na superfície era mínima.

Mesmo sob a ação de ondas de cinco ou seis metros de altura, o Flip, quando na vertical, não variava mais do que meia polegada na superfície – como uma garrafa boiando no mar com líquido dentro.

E jamais tombava.

Para voltar à posição normal, bastava ao comandante fazer o processo inverso do mergulho, injetando ar comprimido no interior do casco – que, gradativamente, retornava à superfície.

O Flip foi um engenho surpreendente. Especialmente para algo projetado 70 anos atrás.

Durante 59 anos, o Flip, que fora construído para atender ao Instituto Americano de Pesquisas Navais, serviu a cientistas e oceanógrafos, atuando como laboratório avançado para pesquisas marítimas – e ponha avançado nisso…

A bordo dele, trabalhando em um navio quase de ponta-cabeça, pesquisadores desenvolveram inúmeros trabalhos e teorias sobre correntes marítimas, comportamento e canto das baleias, interações entre ar e mar, e especialmente avaliações acústicas oceânicas, já que, como não tinha motores (para movimentá-lo, era preciso rebocá-lo), o Flip não produzia nenhum ruído que pudesse atrapalhar as medições.

Uma vez fincando no oceano, como um gigantesco microfone flutuante (até pela forma inusitada que adquiria), o Flip era capaz de ficar praticamente parado na superfície, imune às oscilações, e oferecendo pouquíssima resistência aos ventos e ondulações – daí ter sido uma ferramenta tão valiosa para os pesquisadores.

“O Flip foi uma maravilha da engenharia e ajudou muito a humanidade na compreensão dos oceanos”, disse a diretora de um dos institutos para os quais ele atuou, o Scripps, da Universidade da Califórnia, Margaret Leinen, na comemoração dos 50 anos de atividade do navio, em 2012.

Quando isso aconteceu, o Flip, por sua capacidade de afundar sem que isso virasse uma tragédia (embora sempre arrancasse gritos horrorizados dos mal-informados), já havia virado atração na internet.

Por sua engenhosidade, durante décadas, o Flip participou de centenas de estudos científicos marinhos.

Alguns dos mais recorrentes, envolviam as ondulações oceânicas, especialmente as chamadas “ondas loucas”, ondas oceânicas de tamanho anormal, que surgem sem nenhum aviso e bem mais altas que as demais, na tentativa de descobrir um padrão que possibilitasse prevê-las.

E foi durante um desses estudos, que ocorreu o único incidente da história deste peculiar navio.

Em 1969, os ocupantes do Flip tiveram que ser resgatados no mar, após se jogarem na água, quando ondas com mais de 25 metros de altura (limite máximo para o qual ele fora projetado) passaram a bombardear a estrutura vertical do navio. Mas não houve vítimas.

O Flip seguiu sendo usado nas pesquisas sobre ondas, inclusive as “internas”, grandes massas de água que se movem abaixo da superfície, já ainda não inventaram nada melhor para isso do que um navio que afunda quase inteiro para “senti-las”.

Até então, medições desse tipo eram feitas por meio de barcos convencionais (o que, às vezes, resultava em desastres) ou através de plataformas de petróleo, fincadas no leito marinho – mas que, por isso mesmo, não ofereciam a mesma precisão nas avaliações.

Nenhum outro meio era capaz de estudar, de maneira inequívoca, o que de fato acontecia debaixo d´água.

Até que, nove anos depois, em 2021, já precário e necessitando de uma série de reparos, decidiu-se que o Flip seria aposentado.

E, mais tarde, ele foi vendido à uma empresa de desmanche de navios, que o transformou em pura sucata.

Nunca houve um navio tão original quanto o Flip.

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