Os náufragos que viraram comida
Um dos mais dramáticos episódios envolvendo naufrágios no Estreito de Torres, onde o oceano Índico encontra o Pacífico, aconteceu em 1858 e envolveu um grupo de 327 chineses que estava sendo levado pelo veleiro francês St. Paul, comandado por Emmanuel Pinard, para trabalhar nas minas de ouro da Austrália.
O St.Paul havia partido de Hong Kong com destino a Sydney, mas as calmarias tornaram a travessia extremamente lenta, o que comprometeu o seu estoque de comida.
O capitão Pinard decidiu, então, pegar um “atalho” na rota, entre as Ilhas Salomon e o arquipélago Louisiade, a fim de encurtar o tempo de viagem.
E enveredou por uma região sabidamente perigosa e mal mapeada.
O resultado foi o naufrágio do St.Paul, depois de bater em um banco de coral, a pouca distância de um grupo de ilhotas, que, por sua vez, ficavam próximas a uma grande ilha chamada Rossel, habitada por selvagens canibais.
O St. Paul tinha apenas três pequenos barcos de apoio e um deles foi destruído no naufrágio.
Restaram só dois, que logo foram ocupados pelo comandante e seus tripulantes.
Aos chineses, só restou pular no mar e nadar até uma ilhota, que, felizmente, ficava próxima.
Felizmente, ninguém morreu no naufrágio.
Mas o que aconteceria depois seria bem pior que isso.
No dia seguinte, Pinard enviou alguns homens à ilha principal, em busca de água doce.
Junto com o precioso líquido, eles encontraram um grupo de nativos selvagens, que os atacaram.
No desespero da fuga, três homens foram deixados para trás na ilha. E nunca mais foram vistos.
Ao saber do ocorrido, Pinard tomou uma decisão: partir em busca de ajuda, em terras mais civilizadas.
A Austrália, distante algumas centenas de milhas, era a localidade mais próxima.
E era para lá que ele seguiria, com um dos barcos, levando consigo a tripulação do St. Paul, a fim de ajudar na longa travessia a remo.
Mais uma vez, aos chineses, só restou o abandono, embora Pinard tivesse dito que voltaria para buscá-los.
Para evitar surpresas de última hora, a partida do grupo foi quase sigilosa.
Na madrugada seguinte, Pinard e seus homens aproveitaram que os chineses dormiam e se lançaram ao mar, com parte dos suprimentos que haviam conseguido resgatar do naufrágio do St. Paul – que, mesmo assim, durou pouco.
A travessia foi longa, sofrida e os obrigou a beber até a própria urina, para tentar aliviar a sede no mar.
Mesmo assim, Pinard mostrou-se severo e implacável com seus homens.
Doze dias depois, o grupo finalmente atingiu a então deserta costa da Austrália, onde parou em busca de água e comida.
Após encontrar o que buscava, Pinard voltou para o mar.
Mas, no caminho, o grupo foi recolhido por um barco que passava, e levado para Sydney.
Lá, após um bom tempo descansando, Pinard convenceu o capitão da fragata inglesa Styx a navegar até o local do naufrágio do St. Paul, a fim de resgatar os chineses.
Em 5 janeiro do ano seguinte, 77 dias após ter partido, Pinard retornou ao local onde havia deixado os chineses, mas só para constatar que um massacre havia sido perpetuado.
Dos 327 chineses que haviam sido deixados na ilha, restavam apenas cinco – e todos já em poder dos canibais da ilha principal, que, ao verem a chegada da fragata, fugiram para as montanhas, levando junto quatro deles.
Apenas um chinês sobreviveu e coube a ele contar o que havia acontecido.
Após a partida de Pinard, os selvagens atacaram a ilha onde eles estavam, mas, ao contrário do esperado, não mataram ninguém.
Ao contrário, levaram água e comida para os chineses, e assim continuaram fazendo, por dias a fio.
Até que, ao ver que os chineses já haviam recuperado a saúde e o peso, passaram a transportá-los para a ilha principal, em pequenos grupos.
Mas com um único objetivo: devorá-los.
Tal qual gado em processo de engorda, os chineses foram sendo paulatinamente transformados em comida, pelos nativos canibais.
A notícia chocou a Austrália e a Europa, mas não causou grande comoção no capitão Pinard, cujo histórico incluiu outro caso de abandono de subordinados, naquele mesmo episódio.
Após deixar os chineses entregues à própria sorte numa região repleta de seres primitivos e cruzar para a Austrália, Pinard também abandonou, numa parte erma da costa australiana, o seu jovem camareiro, um francês chamado Narcisse Pelletier, de apenas 14 anos de idade, que acabou sendo adotado por uma família de aborígenes e ali viveu por 17 anos, até ser resgatado por outro barco.
Mas essa já é outra história…
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