por Jorge de Souza | fev 20, 2023
A Ilha Bouvet, no extremo sul do Atlântico, é uma das mais isoladas e inóspitas porções de terra do planeta – além de ser a ilha desabitada mais remota do mundo.
A localidade mais próxima dela fica a mais de 1 600 quilômetros de distância, e é uma igualmente erma península da Antártica, onde também não vive ninguém.
Nem terra propriamente dita a Ilha Bouvet tem.
Só lavas vulcânicas, permanentemente cobertas de gelo e neve.
A ilha também fica fora de qualquer rota de navegação, e bem distante de todas elas, razão pela qual não costuma ser visitada por nenhum barco.
Daí a surpresa dos técnicos de uma empresa de pesquisa encarregada de fazer a instalação de estações meteorológicas naquela ilha deserta, quando ali chegaram, em 1964, e deram de cara com um bote salva-vidas de madeira, em relativo bom estado, fincado na única praia de Bouvet.
Perto dele, havia dois remos, um galão vazio, mas nenhum vestígio de quem os teria usado ou conduzido aquele misterioso barco até a ilha.
Teria ele sido usado por algum náufrago, já que não havia outro motivo para alguém ir até aquele fim de mundo, ainda mais a remo?
Se sim, por que aquele suposto náufrago não usara o próprio bote, devidamente emborcado, como abrigo contra as inclemências climáticas da Ilha?
Aquele bote fincado na praia de uma ilha desabitada não fazia o menor sentido.
Intrigados, os pesquisadores foram embora, mas registraram o estranho achado no diário de bordo do navio inglês que os havia levado até Bouvet, o HMS Protector – e o fato se espanhol pela comunidade marítima.
Dois anos depois, outra expedição da mesma empresa voltou à ilha, para implantar a tal estação meteorológica, e – surpresa! – nem o bote nem os remos nem o galão estavam mais na única praia de Bouvet.
Como aquele bote que ninguém nunca soube de onde veio – e com quem a bordo? – sumiu da praia onde estava encalhado, é um enigma que dura até hoje, apesar de algumas teorias a respeito.
Nunca se soube ao certo a origem (nem o fim) daquele misterioso bote salva-vidas encontrado em Bouvet.
Mas, como nenhuma ossada humana jamais foi achada na ilha, a teoria do náufrago que teria chegado remando, após seu barco ter afundado no sul do Atlântico, passou a ser questionada, embora a neve abundante da ilha pudesse ter facilmente encoberto seus despojos.
A mais provável explicação veio anos depois, quando ficou comprovado que, dez anos antes da chegada dos técnicos do HMS Protector à Bouvet, uma equipe científica russa havia visitado a ilha, a bordo do navio de pesquisa Slava-9, e alguns membros desembarcaram, com a ajuda de um pequeno barco, a fim de vasculhar a área.
Mas, surpreendidos por uma das costumeiras tempestades de Bouvet, teriam ficado presos na ilha.
Durante dois dias, o grupo teria tentado retornar ao navio.
Mas não conseguiram.
O capitão da operação teria decidido, então, enviar um helicóptero, aeronave que começava a ser usadas em pesquisas científicas na Antártica, e que o navio transportava, para retirar o grupo, deixando, porém, na ilha o bote usado para o desembarque.
Esta é a explicação mais aceita até hoje para o maior dos mistérios de Bouvet.
Mas, e o sumiço posterior do bote, dos remos e do galão?
Para essa questão, a única explicação é que, por conta de outra tempestade, após a partida dos ingleses, o barco teria afundado e os remos e o galão levados pela correnteza para o alto mar, onde nunca mais foram encontrados – algo ali fácil de acontecer, porque não existe nada perto da esquecida Ilha Bouvet.
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André Cavallari, leitorImagem Reprodução https://mikedashhistory.com/
por Jorge de Souza | fev 14, 2023
Em 9 de fevereiro de 2013, uma fortíssima tempestade de inverno se abateu sobre o mar da costa nordeste dos Estados Unidos, gerando ondas de seis metros de altura e ventos que passavam dos 100 km/h.
No meio dela, estava o veleiro Wolfhound, com quatro irlandeses a bordo: Declan Hayes, Morgan Crowe, Tom Mulligan e Alan McGettigan – este, dono do barco e um velejador famoso na Irlanda, onde sempre participava de regatas, representando o aristocrático Royal Irish Yacht Club.
Mas, naquele dia, McGettigan não estava competindo.
Apenas levava para casa, na Irlanda, seu novo barco, que comprara nos Estados Unidos: um bonito veleiro da marca Swan, de 48 pés, avaliado em cerca de meio milhão de dólares.
A primeira perna da longa jornada até o outro lado do Atlântico começara em Connecticut, iria até as Ilhas Bermudas, centenas de milhas náuticas adiante, e fora prevista para ser feita durante uma janela favorável de tempo, entre as frequentes tormentas de inverno na região.
Mas a meteorologia mudou no meio da travessia e pegou o grupo de surpresa.
Por conta da tempestade, que chegou de maneira tão violenta quanto inesperada, o barco de McGettigan sofreu nada menos que três emborcamentos no mar.
O último deles, nas primeiras horas da manhã daquele 9 de fevereiro, danificou o motor e o sistema de energia do barco, embora, milagrosamente, não tenha afetado o mastro do veleiro.
Assustado com aquela sequência de capotamentos, e temeroso do que ainda poderia vir pela frente, McGettigan tomou uma decisão tão drástica quanto – como ficaria comprovado, mais tarde – precipitada: acionou o equipamento automático de pedido de socorro, e, junto com seus companheiros, se preparou para abandonar o barco no mar, quando estavam a cerca de 70 milhas de distância das ilhas Bermudas.
Tão logo o pedido de socorro chegou à base da Guarda Costeira Americana, uma equipe de resgate embarcou em um avião Hercules, um dos poucos da corporação com autonomia para ir e voltar tão longe da costa, e partiu em busca do veleiro sinistrado.
Embora o dia já tivesse amanhecido, as condições de visibilidade eram mínimas, por causa da tempestade.
Mesmo assim, após um par de horas voando em círculos, a equipe de resgate localizou o veleiro no mar.
Mas não teve como içar seus ocupantes, já que estavam em um avião, não em um helicóptero.
O máximo que a equipe pode fazer foi, com base nas coordenadas de localização do veleiro, acionar dois navios cargueiros que estavam relativamente próximos, a fim de realizar o resgate dos quatro irlandeses.
A operação foi difícil, por conta da força dos ventos e das ondas, durou quase seis horas, mas, por fim, o cargueiro grego Tetien Trader conseguiu embarcar os velejadores, e seguiu viagem, para a Europa, onde eles desembarcaram, duas semanas depois.
Já o veleiro Wolfhound foi deixado à deriva no mar, com a certeza de, com a intensidade daquela tormenta, e sem ninguém para comandá-lo, logo afundaria.
McGettigan tinha certeza disso.
Mas ele estava enganado.
Nove semanas depois, quando até a companhia seguradora já havia dado o barco como perdido e providenciava o pagamento do seguro, o explorador, cineasta e velejador americano Matt Rutherford, retornava de uma expedição oceânica, quando avistou o que parecia ser um veleiro parado no meio do mar, já que suas velas estavam estranhamente arriadas.
Intrigado, tentou fazer contato pelo rádio.
E não teve nenhuma resposta.
Decidiu, então, se aproximar para ver se havia algum movimento a bordo.
Nada.
O passo seguinte de Rutherford foi embarcar naquele estranho, mas bonito veleiro, apesar do temor de que encontrasse algo sinistro a bordo, como um cadáver – preocupação que deixou clara ao gravar um vídeo entrando no barco.
Dentro dele, porém, Rutherford só encontrou a habitual desordem que costuma acometer os barcos que são abandonados às pressas, frente a uma emergência, como havia sido o caso do veleiro de McGettigan – cujo nome, pintado em letras garrafais na popa, não deixava a menor dúvida.
Era ele: o Wolfhound.
Mas o mais impressionante é que o barco estava em perfeito estado, com o mastro ainda intacto, e jazia, placidamente flutuando, a mais de 800 milhas de distância das Ilhas Bermudas, a despeito de ter sido abandonado bem próximo a elas, apenas pouco mais de 60 dias antes.
Em pouco mais de dois meses, empurrado apenas pelos ventos e correntezas, o Wolfhound navegara mais de 700 milhas náuticas, o que era algo igualmente extraordinário.
Rutherford tentou rebocar o barco e levá-lo para os Estados Unidos.
Mas, após menos de 50 milhas, concluiu que seria impossível.
Novamente, então, deixou o Wolfhound à deriva no mar, após notificar a Guarda Costeira – que, por sua vez, avisou McGettigan, que, no entanto, não teve como resgatar o barco.
O que aconteceu com o veleiro do irlandês depois disso é um mistério guardado a sete chaves pelo oceano.
Mas é praticamente certo que, em algum momento, ele afundou, já que nunca mais foi avistado.
No entanto, dois meses atrás, o sombrio passado do Wolfhound voltou à tona, com a divulgação, na internet, do espetaculoso vídeo que Matt Rutherford gravou ao abordar o veleiro abandonado no mar, quase dez anos antes – fato que gerou pesadas críticas, já que as imagens (que bombaram nas redes sociais) não revelam quando elas foram feitas.
Por que Rutherford levou tanto tempo para divulgar o vídeo?
Ele não respondeu.
Uma das hipóteses é que tenha sido por respeito ou homenagem a Alan McGettigan, já que o irlandês morrera apenas um mês antes, em novembro do ano passado, de causas naturais.
Mas nem a morte poupou o famoso velejador irlandês das pesadas críticas que recebeu dez anos atrás, quando, ao abandonar seu barco no mar, ignorou uma das mais elementares lições que os velhos marinheiros têm para dar: aquela que prega que, se o barco estiver em bom estado (como estava o Wolfhound, ao ser abandonado, e como comprovou mais tarde, ao ser encontrado), o lugar mais seguro será sempre a bordo dele.
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por Jorge de Souza | fev 9, 2023
Era tarde de domingo, 26 de maio de 1991, quando o veleiro Kangaroo, um dos primeiros modelos fabricados no Brasil – na época, também um dos maiores e mais modernos barcos a vela feitos no país – atracou na Marina Bracuhy, em Angra dos Reis, após o seu passeio inaugural.
O barco, ainda cheirando a novo, fora entregue naquela semana ao seu dono, um empresário de São Paulo, que desembarcou entusiasmado com o seu primeiro fim de semana a bordo do seu novo barco.
Mas mal sabia ele que seria o último…
Horas depois, a bordo daquele mesmo veleiro, começaria uma das mais ousadas peripécias náuticas que se tem notícia no Brasil, envolvendo um então jovem velejador carioca e dois amigos de última hora.
A história começou dois dias antes, quando, sem emprego, sem dinheiro, sem perspectiva de dias melhores, e em vias de ser despejado do quarto alugado onde morava, por falta de pagamento, o jovem velejador decidiu pôr em prática um plano tão maluco quanto fadado ao fracasso: furtar um veleiro e com ele fugir para a Austrália, onde tentaria ganhar a vida, mesmo entrando no país clandestinamente e, ainda por cima, com um barco roubado – o que, certamente, logo seria descoberto.
Mas ele não pensava assim.
Na opinião dele, por ser um país com uma costa enorme, seria fácil esconder um veleiro roubado na Austrália, até que ele juntasse dinheiro suficiente para indenizar o dono do barco – embora não soubesse exatamente como faria isso.
Tampouco imaginou o pesadelo que acabaria vivendo durante os mais de 40 dias que passou no meio do Atlântico, a caminho da África do Sul, onde pretendia fazer uma escala, com um barco que não conhecia e sem nenhum preparo prévio para aquela longa travessia.
O desespero e a impulsividade da juventude falaram mais alto.
E ele decidiu, de supetão, colocar o plano em prática.
O início do planejamento para aquela tresloucada travessia que ele queria fazer foi em uma mesa de bar, em Angra dos Reis.
Ali, ele listou, em um guardanapo, o que teria que levar na viagem: comida, combustível, cartas náuticas e roupas de frio.
Mas com qual dinheiro compraria tudo aquilo se não tinha nada no bolso?
Foi quando entrou no bar um antigo conhecido, então pescador na Ilha Grande.
O velejador começou a conversar com o amigo e logo contou o que pretendia fazer, pedindo algum dinheiro emprestado.
O amigo concordou em ajudá-lo, mas com uma condição: que fosse junto na viagem.
Depois de pensar por alguns instantes, ele aceitou a proposta.
Mas o problema é que, também o amigo não tinha dinheiro algum.
Ele, porém, lembrou do irmão, dono de uma velha motocicleta — quem sabe ele não toparia vendê-la?
No dia seguinte, o irmão foi consultado e, com certa facilidade, concordou em vender a moto para levantar algum dinheiro.
Mas sob outra condição: que ele também fosse na travessia.
Sem alternativa, o mentor do palno aceitou também.
Em questão de horas, o seu plano de navegar sozinho do Brasil até a Austrália com um veleiro surrupiado ganhou dois novos cúmplices.
Na manhã seguinte, enquanto o amigo saiu para comprar mantimentos com parte do dinheiro arrecadado com a venda da motocicleta, o velejador e o irmão foram até a maior marina da região, prospectar o barco que depois furtariam.
O objetivo era achar um veleiro em bom estado – e de bom tamanho, já que, agora, seriam três pessoas -, capaz de cruzar oceanos da maneira mais rápida possível, já que eles estariam fugindo.
Caminhando pelos trapiches da Marina Bracuhy, naquela época quase aberta ao público, o velejador viu um veleiro que cabia bem nos seus planos.
Era o novíssimo Kangaroo — “Canguru” em português, por ironia, nome do animal símbolo do país para onde eles pretendiam fugir com aquele barco.
E combinaram que fariam isso assim que o movimento habitual de fim de semana na marina terminasse.
Naquele mesmo dia, com outra parte do dinheiro, o velejador pegou um ônibus e foi para o Rio de Janeiro, a fim de comprar cartas náuticas para a travessia até à Austrália.
Achou apenas a da costa da África do Sul, que seria a primeira escala da longa viagem. Comprou, então, um mapa convencional, desses usados em livros de escola, para compensar a falta de cartas náuticas entre a África e a Austrália – não havia como aquilo dar certo…
O plano era cruzar o Atlântico até a Cidade do Cabo, depois contornar o litoral da África do Sul, cruzar o canal de Madagascar, subir até as Ilhas Seychelles e, de lá, num só bordo, alcançar o destino final.
Pelas contas nada precisas de Douglas, seriam quase 10 000 milhas náuticas e mais de dois meses no mar.
Arriscado?
Sim.
Mas ele não via outra forma de tentar mudar de vida rapidamente.
No domingo à noite, quando o movimento dos barcos de fim de semana já havia terminado, o velejador chegou à marina, na companhia de Thor.
Para chegar ao barco sem gerar suspeitas nos vigias, usou um velho truque: se fez passar pelo marinheiro da embarcação e chegou reclamando do patrão – “Onde já se viu, num domingo à noite, mandar levar o barco para o Rio de Janeiro?”.
A jogada foi um sucesso.
Não foi preciso sequer arrombar a portinhola da cabine, porque ela não estava trancada.
O velejador entrou no barco, acionou a chave geral, fez ligação direta no motor, mandou o amigo soltar os cabos e os dois partiram.
“Agora, não tem mais volta”, disse para o comparsa, entre nervoso e aliviado.
Mas, naquele dia, os dois não foram longe.
Logo pararam na vizinha Ilha Grande, onde o irmão do amigo os aguardava com os suprimentos, já que entrar na marina com muitos volumes levantaria suspeitas.
Ao chegarem lá, ficaram sabendo que o terceiro integrante do grupo não havia comprado combustível para o motor do barco, porque havia escassez de óleo diesel na ilha.
Também deram de cara com o pai dos dois jovens, que, intrigado com aquele bonito veleiro no humilde trapiche do casebre da família, perguntou para onde eles iriam.
“Vamos para a Bahia, entregar esse barco”, desconversou o filho mais velho. “Em 15 dias, voltamos”.
O idealizador daquele furto ficou preocupado com a falta de combustível tanto quanto com aquele comentário.
Sabia que a viagem que fariam não teria volta e que a família começaria a procurá-los – e acionar a polícia – após aquele prazo tão curto, o que, de fato, aconteceria mais tarde.
Já, na marina, a ausência do barco não chamou a atenção de ninguém.
Nem mesmo do dono do veleiro, que, depois daquele passeio de estreia, fora para casa pensando em voltar a navegar só bem mais adiante.
Naquela mesma noite, após o velejador apagar as três últimas letras do nome do barco no casco, que, com isso, passou a exibir apenas a palavra “Kanga”, os três partiram, rumo ao outro lado do Atlântico – uma longa, temerária e improvisada travessia, que qualquer navegador razoavelmente responsável julgaria, no mínimo, condenável.
Ainda mais com um barco estranho e furtado.
Mas ele não pensava assim.
Aos poucos, Angra dos Reis foi se tornando uma luzinha cada vez mais distante no horizonte e os três ganharam o mar aberto, sem, contudo, nenhum preparo, como ficaria claro mais tarde.
Para tentar saber em qual ponto do oceano estavam, eles contavam, apenas, com a ajuda de um arcaico SatNav, equipamento que estimava a posição do barco apenas a cada um par de horas.
E, para complicar ainda mais a navegação, o velejador optara por fazer a travessia até a África pelo temido paralelo 40 Sul, uma faixa oceânica abaixo dos dois continentes, dominada por temperaturas gélidas, mar grosso e fortíssimos ventos.
As duas primeiras semanas no mar foram de pura batalha.
Uma das mais intensas foi para tentar reparar as velas do barco com a mesma rapidez com que elas rasgavam, por conta da violência dos ventos.
Seu amigo passava a maior parte do tempo tentando costurá-las.
Mas nem materiais para isso eles tinham.
Usavam a agulha de uma seringa do kit de primeiros socorros do barco, e linhas extraídas do bordado com o nome do veleiro na capa da retranca.
Rapidamente, o que estava ruim foi ficando cada vez pior.
E o velejador, ali comandante do barco, adoeceu.
Sozinhos no comando do barco, os dois irmãos entraram em pânico.
Eles nada sabiam sobre navegação oceânica e não tinham ideia precisa sobre onde estavam.
Deitado, em repouso na cabine do barco, o velejador tentava orientá-los.
Mas só conseguiu retomar o comando do veleiro dias depois – justamente quando começou uma terrível calmaria.
E o pouco combustível que restava no tanque quase vazio do veleiro não deu nem para o começo da jornada a motor.
Sem vento nem motor para se locomover, o único jeito de seguir avançando foi remar – um de cada lado do casco, com remos improvisados, e o velejador atrás, tentando manter um rumo mais ou menos imaginário.
Navegaram assim por cerca de 100 milhas náuticas, vendo os dias passar numa velocidade inversamente proporcional ao estoque de água e comida a bordo.
Logo, começaram a ter que pescar e a captar água da chuva, para comer e beber – isso quando havia peixes e chuvas…
Já estavam numa situação de quase náufragos, quando surgiu um navio no horizonte.
O velejador correu para pegar e disparar um foguete sinalizador.
Mas logo descobriu que não havia nenhum a bordo.
Também não havia bote de apoio, de forma que qualquer abordagem teria que ser feita casco a casco — um perigo e tanto para um veleiro com casco de fibra de vidro contra um imenso navio de aço.
Ele, então, recorreu ao rádio, e com um inglês para lá de precário, tentou contato com o navio.
Queria um pouco de óleo diesel para o motor do barco, o que também garantiria carregar as baterias – fundamentais para fazer os equipamentos e o próprio motor funcionarem.
Por sorte, seu pedido foi entendido e atendido.
Ao passar perto do veleiro, o navio lançou ao mar dois galões de combustível.
E eles foram em frente.
Mas, com o longo confinamento, as animosidades entre os três foram se tornando cada vez mais frequentes.
Insultos, brigas, desconfianças e acusações passaram a fazer parte da rotina, tanto quanto a fome e a sede, já que água e comida logo se tornaram realmente escassas.
O ambiente a bordo ficou tão insuportável, que, em certa ocasião, o comandante perdeu a cabeça e tentou afundar o veleiro, cortando a mangueira de saída de água do casco, para que ele inundasse.
Foi contido pelos irmãos, mas a briga foi feia.
E ainda viria coisa pior pela frente.
Dias depois, os três tiveram um apavorante encontro com um dos mais impressionantes fenômenos da costa africana: as grandes ondas, que surgem sem nenhum aviso.
Em uma sequência delas, o Kangarro não afundou por muito pouco.
E ainda havia o frio congelante das altas latitudes do roteiro que Douglas havia escolhido.
Os três tremiam dia e noite, porque não tinham roupas apropriadas, apenas casacos convencionais, que viviam encharcados – bem como a própria cabine do barco. Quando o frio apertava, o comandante improvisava um casaco extra com a capa do timão do barco.
E se perguntava quando aquele suplício iria terminar?
Dias depois, quando já não havia mais água nem comida a bordo, ele avistou, durante a madrugada, o que pareciam ser luzes ao longe.
Com o passar das horas, elas foram ficando cada vez mais visíveis.
Quando o dia clareou, a silhueta da Cidade do Cabo, a segunda maior da África do Sul. se materializou lá longe.
Após mais de um mês no mar, o Kangaroo, finalmente, chegara ao outro lado do Atlântico.
Mas chegou com as velas rasgadas, alguns brandais quebrados, o mastro ligeiramente torto, a cabine encharcada e, de novo, sem combustível.
E com três homens torrados pelo sol e bem mais magros do que quando partiram.
Na maior marina da cidade, o comandante inventou que eles haviam perdido todos os mantimentos do barco em uma tempestade, e pediu ajuda.
Um dos donos da marina se sensibilizou com a história fictícia – contada em um inglês precário, mas que, por outro lado, impediu perguntas incômodas -, e decidiu ajudar os brasileiros, comprando comida e combustível para eles, além de não cobrar pela ancoragem.
Só assim eles puderam seguir viagem, margeando a costa sul-africana.
Quando, porém, estavam se aproximando da cidade de Durban, milhas adiante, foram interceptados por uma lancha da Guarda Costeira.
Era uma inspeção de rotina e o trio foi instruído a atracar no iate clube local.
Eles tremeram (será que já estavam sabendo do furto do veleiro?), mas obedeceram.
Em terra firme, uma vez mais, o mentor daquilo tudo manteve a mentira sobre a tempestade e narrou alguns detalhes da melancólica travessia do Atlântico – estes reais.
A história impressionou os guardas, que não implicaram nem com a falta de documentos do barco – que, de acordo com a farsa inventada por ele, haviam sido “perdidos quando a cabine do barco inundou”, durante a tal tormenta.
E quem haveria de duvidar que aquele barco, um tanto estropiado, não havia mesmo passado por maus bocados?
Sensibilizado, um dos sócios do clube onde ancoraram até os convidou para uma noite de farra nos bares da cidade.
De repente, tudo voltara a dar certo para os três basileiros.
Até que…
Na manhã seguinte, ainda sob a ressaca da noite anterior, os três decidiram partir rapidamente do clube, antes que alguém fizesse mais perguntas.
Antes disso, porém, como a despensa do Kangaroo já estava quase vazia de novo, um dos irmãos teve a infeliz ideia de invadir o barco ao lado, para roubar comida.
E foi flagrado pelos vigias, que acionaram a polícia.
Era o fim da aventura.
E do sonho do velejador de criar uma nova vida longe do Brasil.
Em vez da Austrália, ele e os dois irmãos foram parar numa cadeia da África do Sul, depois de contarem a história verdadeira por inteiro.
Ficaram presos por um ano, impedidos de receber ajuda até da Embaixada Brasileira – que, a estas alturas, também já sabia do furto do veleiro.
Os três só puderam retornar ao Brasil após cumprirem a pena pelo furto da comida no iate clube – o roubo do barco eles teriam que resolver com a polícia brasileira.
Na volta, foram indiciados, mas absolvidos pela Justiça brasileira, porque alegaram que já haviam sido presos na África do Sul, e não poderiam ser pagar duas vezes pelo mesmo delito – embora fosse outro…
Depois disso, cada um tomou o seu rumo, e trataram de esquecer o assunto.
Ao dono do barco, só restou recuperar e reformar o Kangaroo na África do Sul, e contratar uma tripulação para trazê-lo de volta ao Brasil, onde só chegou dois anos – e uma longa peripécia – depois.
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André Cavallari, leitorColaborou neste artigo Otto Aquino
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