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Só faltava soltar o cinto de segurança. Mas não deu tempo…
A previsão do tempo bem que indicava a chegada de fortes ventos e grandes ondas, quando o veleiro Nina Pope, do capitão suíço Benno Frey, de 72 anos, que vinha fazendo a travessia do Atlântico com dois outros tripulantes não tão experientes (o brasileiro Marcelo Osanai e o suíço-americano Balthasar Wyss), partiu da ilha de Tristão da Cunha, para o segundo trecho daquela travessia.
Aquela viagem havia começado no Rio de Janeiro, no dia 27 de fevereiro de 2024, e terminaria na Cidade do Cabo, na África do Sul, onde os auxiliares do comandante desembarcariam, após viverem sua primeira experiência transoceânica.
Mas não havia alternativa para o grupo.
A ilha de Tristão da Cunha, no meio do Atlântico Sul, famosa por sua exposição às intempéries (onde, por isso mesmo, a ancoragem de barcos só é possível, em média, 70 dias por ano) não tinha porto, nem marina, muito menos uma baía abrigada que pudesse servir para manter um veleiro em segurança.
Seria, portanto, melhor partir e enfrentar a tempestade no mar, do que ancorado diante da ilha.
A esperança é que a tormenta arrefecesse nos dias subsequentes.
Mas não foi o que aconteceu.
Logo no dia seguinte, os ventos aumentaram barbaramente, beirando os 45 nós, bem como as ondas, que passaram a ter entre cinco e sete metros de altura.
Mesmo assim, muito possivelmente, nada aconteceria com Nina Pope, um grande e valente veleiro de 55 pés de comprimento, com o qual o capitão Frey vivia viajando pelo mundo, não fosse um infortúnio: naquela noite, em meio a tormenta, uma boia de rede de pesca abandonada com um pedaço de cabo, enroscou na proa do veleiro e arrancou, como uma estilingada, boa parte da grade de proteção do convés, o guarda-mancebo.
E, pelos buraquinhos dos parafusos arrancados no convés, passou a entrar, silenciosamente, água dentro do barco.
Bem mais do que eles pudessem imaginar.
Com o chacoalhar permanente nas ondas, os tripulantes, abrigados na cabine do veleiro, não sentiram a colisão com a boia, muito menos o consequente dano no casco.
Eles só perceberam que havia algo errado quando soou o alarme da bomba de sucção, informando que havia água empoçada no porão do casco.
Dali em diante, não houve tentativa nem esforço que estancasse ou controlasse a inundação, que eles sequer sabiam de onde vinha.
A batalha inútil contra a inundação durou quatro horas.
Até que, no meio da madrugada, quando a água já estava um palmo acima do assoalho da cabine, o capitão Frey decidiu que era preciso abandonar o barco.
Ativou um pedido de socorro, através de equipamentos que informavam a localização do veleiro e permitiam a comunicação, via satélite, com uma central de atendimento, e, junto com os dois tripulantes, começou a preparar o lançamento da balsa salva vidas inflável.
A resposta do serviço de socorro do Centro de Coordenação de Resgate Marítimo da Cidade do Cabo, a quase de 2 500 quilômetros de distância, veio rápida: um navio petroleiro, o Front Pollux, que vinha da Argentina para a África do Sul, estava a dezenas de milhas de distância, mas aceitara resgatar os velejadores – embora, por conta da tormenta, não pudesse dizer quanto tempo levaria para chegar até eles, nem se os encontraria, já que, naquelas condições, com fortes ventos e grandes ondas, era ainda mais difícil achar uma pequena balsa em alto-mar.
O fato de saberem que outras pessoas estavam cientes do iminente naufrágio, e com a localização do sinistro mais ou menos indicada (uma vez que os ventos e as ondas seguiam empurrando o barco semi-afundado), deixou o grupo um pouco menos apreensivo.
Mas era preciso resistir até que o eventual resgate chegasse.
Se é que ele chegaria…
Enquanto os dois tripulantes menos experientes colocavam alguns suprimentos em sacolas plásticas e vestiam coletes salva-vidas equipados com cintos de segurança, já que os ventos faziam o barco balançar furiosamente o tempo todo, o capitão Frey, vestido com o mesmo equipamento, tratou de destravar e disparar a balsa salva-vidas inflável – que voou longe, empurrada pelo vento.
A operação de trazer a balsa de volta para junto ao veleiro, através do seu cabo-guia, levou alguns minutos.
Mas foi bem-sucedida.
O próximo passo era passar para dentro dela, o que, naquelas condições, com o barco subindo e descendo nas ondas, não era nada fácil.
Com o capitão segurando firmemente um segundo cabo, para dar alguma estabilidade a balsa, o americano Balthasar Wyss foi o primeiro a embarcar.
O brasileiro Marcelo Osanai seria o segundo, e se preparava para fazer isso, quando, logo após soltar o seu cinto de segurança, uma onda especialmente alta atingiu o barco e virou a balsa.
Ele se atirou no mar, ajudou o colega a desvirar a balsa, e pulou para dentro dela – mas ambos perderam todas as sacolas com suprimentos que haviam preparado.
Apesar da tensão e das dificuldades, a operação de abandono do veleiro vinha dando certo.
Faltava apenas que o capitão embarcasse.
E foi o que ele se preparou para fazer.
Ainda segurando o cabo da balsa com uma das mãos, Frey se aproximou da borda do casco e baixou a outra mão, a fim de soltar o cinto de segurança, que estava atado ao guarda-mancebo.
Mas não conseguiu alcançar o mosquetão que desataria o cinto da grade, e gritou por ajuda.
Marcelo, então, se atirou novamente no mar, para ajudar.
Mas não deu tempo.
Antes que o brasileiro conseguisse chegar até o capitão, que ainda tentava se livrar do cinto, o veleiro sumiu diante dos seus olhos, e afundou feito uma pedra, levando junto com ele o suíço.
Foi tudo tão rápido, que – como sempre acontece nos naufrágios, quando a velocidade de descida aumenta exponencialmente na medida em que o barco afunda -, num piscar de olhos, o brasileiro viu desaparecer também o mastro do veleiro, que tinha quase 20 metros de altura.
Ele ainda ficou alguns segundos olhando para a água, na esperança de que o capitão emergisse.
Mas nada aconteceu.
O capitão do Nina Pope havia sido vítima do próprio cinto de segurança, feito para protegê-lo.
Uma triste ironia: naquele dia, a “linha da vida”, como os velejadores respeitosamente chamam os cintos de segurança de seus barcos, matara um deles.
Embora aterrorizados pelo que haviam presenciado, os dois sobreviventes tentaram se concentrar na luta pela própria sobrevivência.
A primeira providência foi tentar tirar parte da água que entrara na balsa, quando ela virou no mar.
Usaram para isso um saco plástico do kit de sobrevivência que havia na balsa.
Já a outra providência – tão urgente quanto a primeira – foi acionar os aparelhos pessoais de localização, que havia nos coletes salva-vidas de cada um dois.
Mas, por precaução, acionaram apenas um deles, a fim de poupar bateria, já que não sabiam por quanto tempo ficariam naquela situação.
O dia já havia amanhecido, mas o mar permanecia infernal, com altas ondas e muito vento.
Enxarcados, Marcelo e Balthasar passaram a sofrer também com o frio, e temiam virarem vítimas de hipotermia.
O único consolo é que o localizador continuava funcionando, e isso seria fundamental para o resgate encontrá-los, naquela imensidão de águas turbulentas.
A espera durou cerca de seis horas de pura aflição.
Até que os dois ouviram um apito.
Minutos depois, viram um grande navio se aproximando. Para facilitar a localização, usaram uma lanterna que também havia no kit de sobrevivência da balsa, embora fosse dia claro.
Nem precisaria, porque, em um golpe de sorte (como, depois, admitiria o capitão do navio), a tripulação do petroleiro já havia visto a balsa, sacudindo nas ondas.
Mas ainda era preciso resgatá-los.
E isso não seria nada fácil, porque o vento estava forte, o navio era enorme e precisava ser manobrado com muita cautela, para não atropelar a própria balsa.
A opção do comandante foi estancar o navio a uma boa distância da balsa, usá-lo como uma espécie de barreira entre ela e as ondas, e deixar que o vento gradualmente aproximasse as duas embarcações, manobra que levou cerca de meia hora para ser executada.
Quando a distância diminuiu, a tripulação lançou cabos no mar, para serem agarrados pelos náufragos.
O primeiro cabo foi levado embora pela correnteza.
Mas o segundo conseguiu ser capturado por Marcelo, que o amarrou à balsa.
Lentamente, ela foi sendo puxada até o costado do navio, enquanto uma escada era baixada.
Por meio dela, um tripulante desceu e, após algumas tentativas, ajudou os dois náufragos a subir no petroleiro.
Só então eles respiraram aliviados.
Mas a imagem do capitão Frey afundando junto com o barco não saia da cabeça de Marcelo, e diminuía, um pouco, a alegria que ele sentia por estar vivo.
No navio, o brasileiro e o suíço-americano foram acolhidos pela tripulação do capitão indiano Ravi Yadav, que passou muito tempo conversando com os dois.
Contou que aquele era o primeiro resgate no mar que fazia, em 25 anos de profissão, e confidenciou que o desvio que fizera na rota, e o tempo que levara navegando até chegar à balsa, custara algo em torno de 100 mil dólares em combustível.
Mas que a operação fora autorizada pelos donos e fretadores do navio, dentro dos mais nobres princípios de uma lei não escrita, mas seguida à risca pelos homens de valor: a Lei do Mar, que determina que qualquer pessoa em apuros no mar precisa ser socorrida, custe o que custar.
O brasileiro Marcelo Osanai não conhecia o mandamento número 1 dos bons marinheiros, mas também o praticara, ao tentar ajudar o comandante Frey a se livrar da armadilha com o cinto de segurança.
Ele tentou salvar um capitão, mas acabou sendo salvo por outro.
De certa forma, o destino o recompensara.
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