O misterioso fim de um fiscal de pesca

O misterioso fim de um fiscal de pesca

No início da tarde de 10 de setembro de 2015, como habitualmente fazia, o americano Keith Davis, de 41 anos, observava a transferência de peixes do pesqueiro taiwanês Chung Kuo 818 para o barco-mãe MV Victoria 168, no qual ele prestava serviço, então parado a cerca de 450 milhas da costa do Equador.

O tempo estava bom, o mar calmo, a operação era rotineira e Davis acompanhava o transbordo dos peixes de uma das amuradas do convés do MV Victoria 168 – que, mais tarde, levaria para terra firme o fruto do trabalho dos demais barcos, liberando-os assim para seguir pescando no mar aberto.

Por volta as 15 horas, a operação foi encerrada e o americano, também como de hábito, foi chamado à cabine de comando, para assinar os formulários que atestavam o correto transbordo dos peixes de um barco para outro – um procedimento de praxe.

Mas não foi mais encontrado.

Dez minutos antes, um dos tripulantes do pesqueiro taiwanês disse ter visto o Davis assistindo à operação.

Em seguida, porém, como registraria o capitão do MV Victoria 168 no seu diário de bordo, ninguém mais o localizou no barco.

Também de acordo com o capitão do pesqueiro, durante três dias, intensas buscas foram realizadas no mar.

Mas sem nenhum sinal de Davis.

Começava ali um mistério, que nunca teve uma explicação satisfatória.

O que aconteceu com Keith Davis?

Davis era um observador profissional de pesca – uma profissão bem pouco conhecida, mas fundamental para coibir abusos, determinar cotas para as empresas de pesca e manter sadios os estoques de seres vivos nos mares do mundo.

Cabe aos observadores de pesca fiscalizar e recolher dados dos cardumes capturados pelos grandes barcos pesqueiros, a fim de impedir a sobrepesca e outras irregularidades.

Como a captura de espécies ameaçadas e, como é comum nos barcos asiáticos, a ocultação de barbatanas de tubarões – uma iguaria para os chineses, mas cuja captura é proibida, pois os animais são devolvidos ainda vivos ao mar, sem condições de nadar –, em meio a outros peixes, nos porões das embarcações.

O problema é que essa fiscalização é feita, pelos observadores de pesca, dentro das próprias embarcações em que eles atuam, o que os transformam em intrusos indesejados, quase sempre sem nenhum apoio das empresas pesqueiras, que, a contragosto, são obrigadas pela regulamentação a recebê-los em seus barcos.

Isso torna os observadores de pesca extremamente vulneráveis e, com frequência, hostilizados pelas tripulações.

Um trabalho solitário, incômodo para quem está sendo fiscalizado e, por isso mesmo, extremamente perigoso.

Mas Keith Davis adorava o que fazia.

Aventureiro e idealista, ele já atuava como observador de pesca há mais de 15 anos, e sabia que sua atividade envolvia muitos riscos, até por ser feita no mar aberto, onde não existem controles, muito menos câmeras de segurança.

Além disso, seu único meio de comunicação com o mundo exterior durante as longas jornadas no mar – às vezes, com meses de duração – eram eventuais e-mails que trocava com seus supervisores, a partir do computador do capitão do barco, quase sempre o único com acesso à internet na embarcação.

E estas mensagens poderiam ser facilmente monitoradas.

Por isso, Davis desenvolvera uma série de códigos secretos, a fim de relatar irregularidades nas atividades dos barcos.

Sua última mensagem enviada do MV Victoria 168 dizia apenas: “A transportadora…” – como se tivesse sido interrompida, censurada ou fizesse parte de uma mensagem cifrada.

Davis embarcou para sua missão no MV Victoria 168, prevista para durar entre dois e três meses ao largo da costa oeste do Equador, no dia 5 de agosto de 2015.

E desapareceu pouco mais de um mês depois.

Dias antes, ele postara na internet um vídeo anônimo que mostrava quatro homens à deriva no mar, sendo executados a tiro por tripulantes de um barco pesqueiro.

O vídeo ilustrava bem os riscos que as atividades no vazio do alto mar embutiam, e a impunidade quase sempre reinante nesses casos – a ponto de aqueles executores não terem tido o menor receio de filmar o múltiplo assassinato que cometiam.

No caso do desaparecimento de Davis, não foi muito diferente.

Embora tenha havido uma investigação policial, quando o barco retornou ao Panamá, dez dias depois (tempo suficiente para a tripulação se livrar de qualquer coisa que a incriminasse), ela não chegou à conclusão alguma.

A combinação de entraves diplomáticos (Davis era americano, a tripulação do MV Victoria 168, em sua maioria, indonésios, e o barco era registrado no Panamá), com a falta de empenho da Polícia panamenha (que preferiu ficar com a versão do capitão do pesqueiro, de que Davis se desequilibrou e caiu no mar, sem ser visto por ninguém – embora fosse dia claro e o tempo estivesse bom), resultou em quase arquivamento do caso, apesar de ele, oficialmente, estar aberto até hoje.

E nem mesmo descobertas posteriores mudaram este cenário.

Tempos depois, no computador pessoal de Davis, a Polícia encontrou dois vídeos, gravados pelo celular da vítima e escondidos dentro de outros arquivos.

Um deles, gravado no dia 29 de agosto – 12 dias antes de o americano sumir -, mostrava dois chineses chegando pelo mar a bordo de outro pesqueiro, e embarcando no MV Victoria 168.

Já o outro vídeo, bem curto e feito uma semana antes da chegada daqueles estranhos, exibia apenas o que parecia ser as costas de uma mulher dentro do barco – embora, oficialmente, não houvesse mulher alguma na tripulação.

Quem eram aqueles chineses? E aquela mulher misteriosa?

A suspeita dos amigos de Davis e outros observadores de pesca passou a ser a de que o MV Victoria 168 estaria envolvido em algo bem mais sério do que simples irregularidades no manejo dos cardumes – e o americano teria descoberto isso.

A principal suspeita era o tráfico internacional de pessoas, já que a costa do Equador era um conhecido ponto de desembarque de imigrantes ilegais, em busca de chegar aos Estados Unidos.

Barcos de pesca asiáticos poderiam estar trazendo pessoas e as transferindo, em alto mar, para o MV Victoria 168.

Antes disso, em outra jornada, em outro barco, Davis já havia feito fotos de homens que não faziam parte das tripulações dormindo nos corredores a bordo.

O americano, porém, nunca levou as denúncias adiante, porque isso não fazia parte do escopo do seu trabalho.

Mas, talvez, os tripulantes do MV Victoria 168 (ou aqueles dois estranhos chineses) não conhecessem este traço da sua personalidade, e tenham optado por não correrem riscos, após o americano ter visto o que não deveria.

Tempos depois, o MV Victoria 168 mudou de nome, para Kai Hang 168, e o caso caiu de vez no esquecimento.

Acidente, suicídio ou assassinato?

Com o inquérito inconclusivo até hoje, ninguém sabe o que, de fato, aconteceu com o abnegado Keith Davis, um biólogo idealista, que acreditava cegamente que, impedindo os abusos na pesca comercial, estava ajudando a construir um mundo melhor.

E cujo corpo jamais foi encontrado.

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André Cavallari, leitor

 

O triste fim da morsa mais famosa da Europa

O triste fim da morsa mais famosa da Europa

militar holandês Dolfijn, então ali atracado.

E o animal seguiu frequentando o local por dias a fio, embora a centenas de quilômetros do seu habitat natural, as frias águas do Ártico.

Até que um dia, com a partida do submarino, o animal, uma jovem fêmea com uma peculiar mancha rosa no focinho, desapareceu da região – para reaparecer dias depois, a centenas de quilômetros dali, em uma marina da cidade de Oslo, capital da Noruega, onde manteve o mesmo hábito de escalar os cascos dos barcos a fim de tomar longos banhos de sol.

Não haveria nenhum problema nisso, não fosse o fato de que, com cerca de 600 quilos de pura gordura, a rechonchuda morsa passou a danificar os barcos, perfurando os estofados e arrancando blocos de espuma com suas presas salientes, e chegou mesmo a afundar os menores, com seu peso de três dígitos.

Com isso, aquela morsa se tornou uma dor de cabeça para os donos de barcos e uma atração turística para os visitantes da marina, que passaram a chegar em números cada vez maiores, para ver de perto um animal que deveria estar no Polo Norte, não nas águas da Europa – culpa, ao que tudo indicava, do aquecimento global, que impactara o seu habitat natural.

Com o aumento da popularidade da atrevida morsa que adorava se aboletar sobre os barcos, sem dar a mínima para o que acontecia com eles depois disso, o animal ganhou até nome, escolhido através de votação pelos espectadores de um canal norueguês de televisão: Freya, a deusa nórdica do amor e da beleza.

Com a chegada do verão europeu, quando todos os noruegueses saem de casa para aproveitar os raros momentos de sol, a popularidade de Freya explodiu de vez.

Todos os dias, centenas de curiosos – invariavelmente acompanhados de crianças – passaram a ser aproximar cada vez mais de Freya, que parecia não se incomodar com todo aquele assédio, embora continuasse sendo um animal selvagem e potencialmente perigoso, caso decidisse investir contra as pessoas.

E isso passou a preocupar o governo norueguês, temeroso de que pudesse ocorrer algum incidente.

Através do Ministério da Pesca, órgão ao qual competem todas as questões ligadas ao mar na Noruega, o governo norueguês passou a orientar as pessoas para que não se aproximassem da cada vez mais adorada morsa, ao mesmo tempo em que torcia para que ela repetisse o que havia feito na Holanda, e fosse embora.

Mas, com tantos barcos da marina a sua disposição, e fartura de peixes na região, tudo o que Freya queria era continuar por ali.

Foi assim por semanas, até que o ministro norueguês da pesca, Frank Bakke-Jensen, cada vez mais incomodado com a presença de Freya nos arredores de Oslo, decidiu fazer algo para acabar de vez com aquele – literalmente – grande problema, antes que ele virasse um.

E a decisão que ele tomou chocou não só os noruegueses, mas também o resto do mundo.

Após consultar alguns veterinários – que lhe disseram justamente o que ele queria ouvir, embora sem muita convicção -, Bakke-Jensen mandou que o animal fosse abatido, alegando que Freya poderia estar estressada com tantos visitantes, e que isso poderia gerar um comportamento perigoso do animal.

Em vez de controlar e punir as pessoas que teimassem em se aproximar da morsa, o ministro preferiu acabar com ela, como se Freya fosse culpada pela fama que angariara – uma decisão tão abjeta, que ensejou protestos no mundo inteiro.

Não adiantou.

Na noite de 13 de agosto de 2022, uma lancha se aproximou do barco sobre o qual Freya dormia, e quatro atiradores dispararam à queima roupa contra o animal, que morreu na hora.

Nem sequer dardos anestésicos foram usados antes dos disparos, porque os técnicos do ministério alegaram que isso poderia provocar a morte de Freya por afogamento, caso ela decidisse tentar escapar pela água – e a sua remoção com vida para outro local fora considerada inviável, por conta do peso do animal.

Até o dono do barco sobre o qual Freya foi abatida, já então devidamente destruído pelo animal, classificou o ato como “assassinato”.

No dia seguinte, frente à enxurrada de protestos mundo afora, o próprio primeiro ministro da Noruega – país que é um dos três únicos que ainda caça baleias, por exemplo – saiu em defesa do seu subordinado, argumentando que havia sido a “decisão correta”, e que “às vezes, é necessário tomar medidas impopulares” – como a de eliminar os animais com os quais não se consegue lidar.

Foi uma decisão, no mínimo, precipitada – para não dizer cruel. Cedo ou tarde, a morsa Freya acabaria por abandonar voluntariamente o mar de Oslo, em busca de novos pontos de alimentação e descanso. Mas o governo norueguês decidiu não esperar, e colocou em prática a mais radical e controversa das soluções.

Já os fãs noruegueses de Freya, após serem surpreendidos com a sumária execução da morsa, decidiram protestar de forma bem mais civilizada: criaram uma campanha para arrecadar fundos e mandaram construir, ao custo de US$ 25 000, uma escultura em bronze em tamanho natural do animal, que, desde abril de 2023, passou a decorar um dos píeres da Marina Kongen, em Oslo, onde ela foi morta, embora jamais tivesse feito nada contra ninguém.

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