Na manhã de 3 de outubro de 1955, o Joyita, um ex-iate de luxo transformado em barco cargueiro, partiu do porto de Apia, capital de Samoa, no Pacífico Sul, com destino ao arquipélago de Tokelau, distante cerca de 270 milhas náuticas. Levava 25 pessoas e um...
O impressionante náufrago das sete vidas
O motor do pesqueiro Água do Rio Negro, um barco de madeira com 17 metros de comprimento e nove homens a bordo, pipocou, falhou, engasgou e, por fim, parou. No meio do oceano. O diagnóstico veio rápido: a bomba injetora de combustível não funcionava mais. Havia duas bombas reservas a bordo. Mas, na ânsia de trocá-la rapidamente, porque o mar estava grosso, quebrou o suporte que a apoiava ao motor. Agora, não havia jeito: seria preciso esperar pelo socorro, no dia seguinte.
O pesqueiro Água do Rio Negro ficou, então, à deriva, num mar cada vez mais revolto. Era o começo de uma impressionante história, em setembro de 2011, envolvendo o pescador potiguar Francisco Januário, o Zabóia, um dos tripulantes daquele barco avariado. Mas nem nos seus piores pesadelos aquele velho pescador, de 61 anos, conseguiria imaginar o que o aguardaria nos setes dias seguintes. A pior das agonias para quem vive no mar ainda estava por vir. E veio. Horas depois.
Rapaz, você não acha que devia amarrar isso? Se ficar solto, pode cair no mar…” . Foi dito e feito. Ao entardecer daquele sábado de mar mexido e motor morto, uma onda mais forte inclinou o Água do Rio Negro mais do que o habitual e a caixa da balsa salva-vidas, aquela que, um dia antes, ainda no porto, Francisco sugerira ser amarrada ao teto da casaria, despencou feito uma pedra no mar.
“Eu vou buscar!”, avisou ele, quando percebeu que nenhum dos companheiros estava disposto a cair no mar. Pegou uma boia e uma linha grossa de náilon, deu três nós atando uma coisa à outra, e se jogou na água, na direção da balsa, que se afastava rapidamente, por causa da correnteza. Não devia ter feito isso. Mas, na hora, Francisco lembrou que, três dias antes, o Água do Rio Negro voltara ao porto fazendo água e, se acontecesse aquilo de novo, era bom ter uma balsa daquelas por perto. Ele mal sabia o quanto dependeria daquela balsa nos próximos sete dias…
Francisco nadou apenas 20 metros e cansou. O mar estava forte demais. Gritou para ser puxado de volta, pela linha de náilon. Os companheiros puxaram. Mas os nós desataram. “O que é que eu fiz!”, pensou, enquanto tentava, em vão, dar braçadas contra a correnteza. Até que parou de nadar. Não adiantava gastar energias. Gritou para alguém vir buscá-lo. Ninguém se ofereceu. O máximo que fizeram foi atirar outra boia na água. Que a correnteza levou para longe. Tentaram de novo. Nada. Daquele jeito, Francisco não seria salvo. E não foi mesmo.
Para piorar, logo anoiteceu. E começou a chover. O Água do Rio Negro foi se tornando uma luzinha cada vez mais distante aos olhos de Francisco. No barco, ninguém mais o enxergava. Francisco foi dado como, irremediavelmente, perdido. Ninguém aguentaria mais que uma noite num mar daqueles. Foi a sua “primeira morte” — e outras seis, entre acontecimentos e decepções, ainda viriam. O velho pescador entregou seu destino a Deus. Seria como Ele quisesse. Resignado, agarrou-se à boia e ficou à espera de algo. Que nem ele sabia o quê.
Uma hora depois, sentiu câimbra nas pernas e ficou ainda mais imóvel, no sobe e desce das ondas. Numa dessas subidas, viu algo branco boiando perto dele. Era a tal caixa da balsa salva-vida, que caíra do barco — a mesma que gerara tudo aquilo. “Tentei pegar a balsa e, agora, ela é que vem me pegar”, pensou, com ironia.
Nadou como pôde e tentou agarrar a caixa — uma espécie de tambor, com uma balsa inflável dentro. Conseguiu. Mas ela estava lacrada por duas cintas de náilon. Passou um par de horas tentando rompe-las, com as unhas. Ficou com os dedos em carne-viva. Quando, finalmente, destravou a caixa, uma balsa salva-vidas dobrada pulou de dentro dela. Aleluia! Era tudo o que um náufrago naquela situação queria! Mas nem deu tempo de respirar aliviado. Com o peso da lona vazia, a balsa afundou feito uma âncora.
Francisco ficou só com a tampa e um pedaço de cabo boiando. Agarrou o cabo e puxou, tentado trazer a balsa de volta à superfície. Conseguiu bem mais do que isso. A corda acionava o disparador e a balsa subiu já inflada. Só que pela metade, porque o cabo estrangulava a passagem do ar. Paciência. Era melhor ter meia balsa do que nada. Passou o resto da noite agarrado ao pedaço que flutuava. Quando amanhecesse, tentaria dar um jeito naquilo. Pegou o cabo e se amarrou nele. Se morresse, pelo menos, um dia, alguém acharia o seu corpo, pensou.
Com a luz do dia, Francisco conseguiu fazer a balsa inflar direito. E descobriu que, debaixo dela, havia uma espécie de mochila, com água e comida — quando tudo parecia perdido, surgia uma nova luz no fim do túnel. Não era muito, é verdade, mas o suficiente para encher de esperanças quem até então não tinha nenhuma.
Entre outras coisas, havia, na mochila, cinco foguetes de sinalização, uma caneca para esgotar a água que entrasse na balsa (que, por causa das ondas, vivia inundada), um apito, dois remos e, mais importante que tudo: oito pacotes de ração, com seis tabletes cada, e dez de água, cada um com dez saquinhos de 50 mililitros. Francisco lembrou de um velho curso que fizera na Marinha, que mandava economizar recursos, e decidiu que só comeria e beberia um daqueles por dia. Assim, não morreria nem de fome nem de sede. Pelo menos por uns dez dias.
Enquanto fazia contas, ele viu um barco pesqueiro parado, não muito distante. Era a primeira de uma série de embarcações que ele avistaria nos próximos dias, sem, contudo, ser visto por nenhuma delas. Tentou identificar algum movimento a bordo. Nada. Os pescadores deviam estar dormindo, depois de uma noite inteira pescando. Tentou remar para se aproximar, mas a correnteza era contrária. Pensou em disparar um dos foguetes, mas concluiu que todos deveriam ser de luz, não de som, portanto, de dia, pouco ajudariam. Resignado, decidiu esperar outra oportunidade. E a correnteza o afastou do barco.
No dia seguinte, o terceiro no mar, nada menos que três outros pesqueiros apareceram diante dele. Mas, de novo, nenhum o viu na água. Quando o primeiro surgiu, não muito distante, Francisco improvisou uma bandeira, com a camiseta na ponta do remo. Foi ignorado e o barco passou rápido. No segundo, decidiu tentar um dos foguetes, mas ele não subiu. E o terceiro barco passou tão perto que ele resolveu usar o apito. Soprou o máximo que pode e um sujeito botou a cara para fora da cabine, olhou para os lados e voltou para dentro, possivelmente pensando ter imaginado coisas. Desanimado, Francisco deitou no fundo encharcado da balsa.
Enquanto isso, longe dali, em Natal, no Rio Grande do Norte, sua família recebia uma estranha visita. Era o mestre do barco Água do Rio Negro, que vinha dar uma triste notícia: Francisco estava morto. Era a “segunda morte” anunciada do velho pescador, que, naquela noite, muito por pouco, não cumpriu mesmo a fatídica previsão: numa onda mais forte, sua balsa virou.
A capotagem custou-lhe meia hora de esforço para desvirá-la os dois remos, a caneca, um foguete e alguns saquinhos de água e ração, que o mar levou. Tudo o que ele não comera nem bebera para economizar, perdera em segundos. Mas, por sorte, a mochila com o resto da água e da comida, que estava bem amarrada à balsa, ficou. Mas as provisões diminuíram. E, junto com elas, também a expectativa de quantos dias mais ele suportaria aquele suplício.
Ao amanhecer, surgiu outra esperança: um navio vinha na sua direção. E tão perto que Francisco até viu duas pessoas conversando, na proa. Animado, gritou, acenou, pegou um foguete e disparou. Mas o artefato, de novo, não funcionou. E, até que ele buscasse outro foguete na mochila, o navio passou. Lá se ia mais uma vida. Ele recostou como pôde na balsa inundada e adormeceu. Pela primeira vez, desde que caíra no mar. três dias antes.
Naquele dia, em Recife, a Marinha dava por encerrada as buscas do náufrago e Francisco era oficializado como morto. Um documento para expedição do atestado de óbito seria entregue a família em três dias. Francisco, mais uma vez, “morria”. Agora, até no papel. Só a família — e ele — não acreditava nisso.
A quarta-feira terminou como começou: sem nenhum fato novo que alimentasse a esperança de um resgate. Na balsa precária, o tempo não passava. Francisco varava dias e noites vasculhando o mar, à procura de algum barco no horizonte, e pulando, o tempo todo, de um lado para outro, para a balsa não virar. O mar continuava grosso, mas, pelo menos, o tempo melhorara. Agora, fazia sol. Muito sol. Sol demais. E esse passou a ser um novo problema: o da insolação.
À deriva, Francisco sequer sabia em qual ponto do litoral estava. Feito um joão-bobo no mar, era levado pra lá e pra cá pelos ventos caprichosos do Nordeste brasileiro. De manhã, o vento empurrava a balsa para o alto-mar. À tarde, o aproximava, de novo, da terra firme.
Mas, naquele dia, ele viu algo diferente no mar: uma plataforma de petróleo surgiu bem na direção que o vento soprava. E continuou se aproximando, nas horas seguintes. Francisco rezava. E ela foi chegando, chegando, chegando, até que, quando sua balsa já deveria estar quase ao alcance dos olhos dos trabalhadores da plataforma, o vento mudou e começou a soprar ao contrário. E lá se foi mais uma chance de salvação.
Vagando ao sabor dos ventos, Francisco alternava doses diárias de decepção e esperança. De vez em quando, à noite, via um brilho mais intenso no horizonte. Era alguma cidade que passava. Ele ficava tentando adivinhar qual seria. Mas não era fácil, porque ele não enxergava a costa. Quando julgou passar por Natal, já estava além de Fortaleza. E ainda havia muito mar pela frente até o final da sua história.
A quinta-feira amanheceu promissora, porque Francisco avistara outro navio. Pegou mais um foguete, esperou ele se aproximar bastante e disparou. Só que ao contrário, de cabeça para baixo. Na ânsia de ser salvo, não percebeu o erro grosseiro. Pior: queimou a mão e só não tacou fogo na própria balsa, porque ela estava cheia d’água. Na confusão, o navio foi embora. Só restaram mais dois foguetes. E bem poucas esperanças.
Aquela foi a primeira decepção do dia. Mas não a única. À tarde, outro navio surgiu no horizonte. E ainda mais alinhado com a balsa. Tão certeiro que Francisco traçou um plano mirabolante: se o foguete não funcionasse, ele tentaria bater com algo no próprio casco do navio, para fazer barulho. Pegou o pequeno cilindro de ar comprimido que inflara a balsa e ficou esperando o gigante. Bem diante dele. O pior que poderia acontecer era ele ser atropelado. Mas, naquela situação, que diferença isso faria?
Segurou firme o penúltimo foguete que tinha e, quando a proa do cargueiro alinhou com seu corpo, disparou. Mais uma vez, o foguete não funcionou. Rapidamente, agarrou o cilindro e se preparou para o plano B. Mas, no último instante, o navio mudou de curso. E passou a alguns metros de distância dele. Pela primeira vez, Francisco sentiu vontade de chorar. Mas nem isso podia, porque precisava poupar líquidos no organismo. Ele já mal urinava. Estava ressecando por dentro, lentamente.
Naquele dia, sua família recebeu outra chocante notícia: o corpo de um homem havia aparecido, morto, numa praia perto de Natal. Os filhos seguiram para lá. A missa, pedindo ajuda ao pai, já encomendada, foi cancelada às pressas. Talvez, tivesse que virar outro tipo de missa, a de sétimo dia. O tal corpo já estava no necrotério. Pediram para um funcionário identificá-lo. Só queriam saber se o defunto tinha todos os dedos da mão direita, porque, na de Francisco, faltava um dedo. O funcionário voltou com a notícia. O de lá tinha. Não era Francisco. Foi mais uma “morte” não consolidada.
Mas, naquele dia, o que estava ruim ficou pior ainda para Francisco: a balsa virou, de novo, no início da noite, e ele só conseguiu desvirá-la na manhã seguinte. Passou a noite inteira agarrado ao fundo emborcado, tentando endireitá-lo. Só parava para respirar e buscar alguma energia onde não mais hávia. Achou que não aguentaria e morreria — seria, então, a sua “sétima” e definitiva “morte”. Mas, quando o sábado amanheceu, ele ainda estava vivo. Ainda que com menos víveres, porque, na capotagem, perdera mais pacotes de ração e água . Agora, o que lhe restara só daria para mais dois dias. Depois disso, só Deus saberia.
Francisco estava tão esgotado pelo esforço da noite que precisava comer algo. Abriu um tablete de ração e olhou, indiferente, para o mar ao redor. Foi quando ele viu um barco se aproximando e desovando, com boias, o que pareciam ser armadilhas para lagostas. Pensou: se ele está deixando as armadilhas é porque, depois, voltará para buscá-las. E decidiu: ficaria agarrado a uma daquelas boias, até que isso acontecesse. Mesmo que levasse dias. Era sua melhor alternativa. Na verdade, única, porque o barco já seguia em frente, desovando mais armadilhas.
Francisco tentou se aproximar, usando as mãos como remos. Quando chegou perto de uma das boias, se atirou na água e saiu nadando, levando a balsa a reboque, amarrada ao pé. Depois de um minuto assim, estava quase morto de cansaço. Voltou para a balsa e se atirou, prostrado, no fundo encharcado. Será que aquele suplício nunca acabaria?
Foi quando, ao longe, o lagosteiro começou a retornar. Francisco ficou olhando, porque já sofrera tantas decepções que era melhor não alimentar esperanças. Mas o que ele não sabia era que, a bordo do tal barco, o mestre Eduardo Januário (coincidentemente mesmo sobrenome dele) já tinha visto a sua balsa, embora a julgasse vazia, porque a avistara justamente quando Francisco caiu na água, para tentar nadar até a boia.
Não fosse pela curiosidade e pela possibilidade de recuperar um “bote desgarrado”, que valeria algum dinheiro, o lagosteiro jamais teria retornado. Mas, quando se aproximou, achou algo bem mais valioso do que uma balsa de borracha. Achou Francisco, clamando por auxílio.
“Fique tranquilo, você está salvo!”, disse o lagosteiro, depois de ouvir os apelos de Francisco. Nem precisava. Bastaria olhar para ver que ali estava um homem já quase à beira da morte. Quando subiu a bordo, sete dias depois de ter se atirado ao mar, Francisco estava seis quilos mais magro, tinha as pernas inchadas e a pele torrada e rachada. Mas, contrariando todas as evidências, estava vivo. Mesmo depois de, por várias vezes, ter “morrido”. Ou quase isso.
Do barco, o lagosteiro passou um rádio e mandou avisar a família do náufrago. Os filhos saíram correndo, para encontrá-lo, numa praia do Ceará. Os vizinhos foram enchendo a rua. Quando Francisco voltou para casa, até o trânsito tinha sido interrompido. Foi saudado como autor de um milagre: o de ter sobrevivido várias vezes a morte e provado que não são só os gatos que têm sete vidas.
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