No início do ano passado, três jovens inexperientes velejadores brasileiros (o gaúcho Daniel Guerra e os baianos Rodrigo e Daniel Dantas, que apesar da mesma origem e sobrenome não são parentes) responderam ao anúncio de uma empresa de transporte de barcos que buscava mão de obra para ajudar a levar um veleiro inglês de 72 pés de comprimento, o Rich Harvest, do Brasil para a Europa. Junto com os candidatos, iriam um comandante e o próprio dono do barco, o inglês George Saul, mais conhecido pelo apelido “Fox”. Mas, na última hora, Fox, espertamente, caiu fora e não fez a viagem.

Coube, então, apenas aos quatro tripulantes conduzir o barco de volta à Europa, com uma quantidade inédita de cocaína pura escondida no fundo do casco, cuja existência, no entanto, eles sempre alegaram completo desconhecimento – algo bem mais fácil de compreender quando se conhecem alguns aspectos desta sórdida história.

Tudo começou dois anos e meio atrás, em maio de 2016, quando o Rich Harvest foi levado pelo próprio dono do barco para um estaleiro em Salvador, para reformas. A obra incluiu a construção de um grande reservatório no fundo do casco, que, segundo Fox disse ao dono do estaleiro, serviria para armazenar mais combustível.
Quando a obra ficou pronta, Foz navegou com o barco até a costa do Espírito Santo e ali, secretamente, abasteceu o tal tanque extra do barco, que ficava debaixo até das camas, com um alçapão secreto e tapado com cimento, com exatos 1 157 quilos de cocaína, acondicionados em 1 063 pacotes e avaliados em mais de R$ 800 milhões.

Na mesma época, Fox publicou o anúncio, recrutando velejadores. Daniel Guerra e os baianos Rodrigo e Daniel se candidataram na hora. Queriam ganhar experiência em navegação, somar milhas náuticas no currículo e, ainda por cima, realizar o sonho de atravessar o Atlântico com um barco. Os três foram rapidamente aceitos. Mais tarde, Fox contratou também o francês Oliver Thomas para comandar o barco naquela viagem.

Logo após a partida, durante uma escala em Natal, a ingênua tripulação do Rich Harvest recebeu a visita da Polícia Federal, que foi averiguar uma denúncia de que havia drogas escondidas no barco. Durante uma manhã inteira, os agentes, com a ajuda até de um cão farejador, vasculharam o interior do veleiro. Mas nada encontraram. Os brasileiros, que haviam ficado assustados com aquela vistoria, respiraram aliviados. Se nem a polícia encontrou nada de errado no barco, não havia por que ficarem preocupados. E seguiram viagem, rumo ao outro lado do Atlântico, com uma verdadeira fortuna em cocaína escondida bem debaixo dos seus pés.

Porém, a travessia do Atlântico foi uma pavorosa sucessão de problemas mecânicos no velho barco. O motor esfumaçava a cabine inteira, o gerador não ligava e até o telefone via satélite parou de funcionar. Com o veleiro se desmantelando, 18 dias depois, ao constatar que estava em vias de perder também o leme, o comandante francês resolveu ignorar as instruções do dono do barco para que não fizessem nenhuma parada no caminho e fazer uma escala não prevista em Cabo Verde, para tentar consertar o barco.

Tal qual ocorrera em Natal, a polícia de Cabo Verde também fora informada de que havia drogas escondidas no barco e, desta vez, as encontrou. O comandante e o brasileiro Daniel Guerra, que estavam dentro no veleiro no instante de chegada da polícia, foram presos na hora, por tráfico internacional de entorpecentes. Os outros dois brasileiros, em seguida, pelo mesmo motivo. Todos os quatro foram unânimes em afirmar que não sabiam da droga escondida e que haviam sido enganados pelo inglês Fox – que, a partir daí, sumiu e se tornou foragido.

Meses depois, os três brasileiros e o comandante francês foram julgados e condenados, em um julgamento repleto de absurdos. A começar pelo fato de que o juiz não quis ouvir as testemunhas de defesa dos brasileiros, ignorou o inquérito da Polícia Federal Brasileira que inocentava os quatro rapazes, e não reconheceu a responsabilidade do dono do barco no episódio. Eles, então, foram encarcerados, situação que dura até hoje.

É certo que os jovens brasileiros foram ingênuos em continuar a bordo de um barco sabidamente investigado por tráfico de drogas, sobretudo depois de seu proprietário ter dado no pé. Faltou sagacidade para intuir que algo não cheirava bem naquela história, a despeito da irresistível vontade dos três em fazer a travessia do Atlântico.

Também foram imprudentes ao embarcar num barco em estado claramente precário – com o veleiro naquele estado, se não fossem presos e impedidos de seguir viagem, talvez nem sobrevivessem àquela desastrosa travessia. Ou seja, os brasileiros incorreram em muitos erros, alguns deles próprios da imaturidade. Mas sempre afirmaram total inocência.

Por reconhecer isso, logo em seguida, a Polícia Federal Brasileira pediu a captura internacional do dono do barco e seus sócios. Robert Delbos, um deles, foi preso dias depois, na Espanha – onde, no momento, aguarda a extradição para o Brasil. E Fox em seguida, na Itália – mas este não chegou a ser extraditado. Uma bobeada da Justiça brasileira, que deixou vencer o prazo da prisão temporária, devolveu a liberdade ao inglês. Que, no entanto, agora está sendo novamente procurado.

O final desta história ainda não existe. E enquanto aguardam a análise de um recurso que pede um novo julgamento, os três brasileiros seguem amargando infelizes dias na cadeia, agora vítimas de outro malfeitor: o sistema de Justiça de Cabo Verde.

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