Na semana passada, terminou mais um capítulo da longa e triste saga da lancha mais famosa da Ilha Grande, no litoral sul do Rio de Janeiro.

Morreu, aos 96 anos, Natalino Pereira dos Santos, o Mestre Natalino, último tripulante de um barco que fez parte da própria história da ilha: a lendária lancha Tenente Loretti, que ainda existe, mas, abandonada, caminha aceleradamente para o mesmo fim dos seus ex-tripulantes.

Construída em 1910, com vigorosas tábuas de peroba (que, apesar dos pesares, ainda resistem bravamente ao tempo), a lancha Tenente Loretti tem, portanto, mais de um século de vida, o que, por si só, justificaria ser preservada.

Mas não é o que vem acontecendo há muito tempo, desde a morte do seu mais ativo guardião, o ex-mestre Constantino Cokotós, companheiro de Natalino durante décadas.

Esquecido há mais de dois anos em um galpão da Marine Verolme, em Angra dos Reis, onde não paga pela vaga já que pertence a Prefeitura da cidade, o barco mais famoso da história da Ilha Grande está num estado deplorável. Seu convés e casaria demonstra estar completamente podre e mal se vê o outrora azul da pintura do casco.

Antes disso, o barco que marcou a vida de Constantino e Natalino estava igualmente abandonado e semiafundado no cais da cidade, onde, não raro, virava abrigo de mendigos e depósito de sacos de lixo.

Mestre Natalino se aposentou quando ainda trabalhava na Tenente Loretti, no início da década de 1970, imediatamente após Constantino, que nutria uma relação ainda mais estreita com o barco que ele comandara por seis décadas.

Durante mais de meio século, a Tenente Loretti, “a lancha da Ilha Grande”, como era mais conhecida, foi o único elo de ligação da ilha com o resto do mundo.

Para os dois mestres já falecidos, a Tenente Loretti não era apenas a lancha na qual eles trabalhavam, levando e trazendo praticamente tudo para a Ilha Grande — de detentos e sacos de cimento para o antigo presídio, à moradores doentes e mulheres grávidas para dar à luz no continente, embora, às vezes, isso acabasse acontecendo no próprio barco, no meio da travessia. “Nasceu muita gente dentro dessa lancha”, costumava recordar Mestre Natalino.

Para ambos, aquele barco era como se fosse um membro da família. “Nas noites de tempestade, cansei de ver meu pai sair de casa para ir dormir na Tenente Loretti, temendo que ela se soltasse da âncora”, recorda um dos filhos de Constantino.

Na Ilha Grande, até hoje, todos os antigos moradores da vila do Abraão, principal povoado da ilha, têm uma história para contar sobre este barco. “Quando eu ouvia o barulho do motor da Loretti se aproximando, sabia que vinham novidades para a Ilha Grande”, recorda uma das moradoras mais antigas do lugar. “Esse barco tem a ver com algumas das mais doces lembranças da minha infância”, resume.

A história da Tenente Loretti (que, por sinal, ninguém na ilha sabe dizer quem foi o homenageado com o nome do barco) está diretamente ligada à do extinto presídio que houve na Ilha Grande.

Foi para atendê-lo que o barco, construído pela Marinha do Brasil, foi transferido para a ilha, de onde passou a fazer viagens quase que diárias ao Rio de Janeiro, para buscar presos e tudo o mais que a Ilha Grande necessitasse — sempre com Constantino no comando e Natalino como seu fiel assistente.
Naquela época, ela era a “lancha-cadeia”, uma espécie de camburão náutico, pelo qual passaram bandidos famosos, como o infame Madame Satã, e presos políticos do calibre do escritor Graciliano Ramos.

Os detentos iam no porão, sob a guarda de policiais armados no convés. O deputado Fernando Gabeira foi um deles, na época da repressão militar. Décadas depois, Gabeira voltou a visitar a lancha, durante a gravação de um documentário sobre a sua vida, para a televisão.

Com o fim do presídio, a lancha foi transferida para o serviço Salvamar, depois incorporado ao Corpo de Bombeiros, que, por sua vez, transferiu o barco para o governo do estado do Rio de Janeiro, que o delegou à Defesa Civil de Angra dos Reis, que o repassou à Prefeitura da cidade, que a delegou as suas secretarias. Até que chegou num ponto em que ninguém mais sabia ao certo quem era o “dono” da lancha, até porque ela nunca teve documentos.

Menos Mestre Constantino, que não tinha dúvidas: a Loretti “era dele”. Pelo menos sentimentalmente.

Constantino nutria tamanho gosto pelo barco que chegava a ter ciúmes quando outro a pilotava – salvo o amigo e companheiro Natalino.

Se algum novo designado pelo presídio chegasse para pilotá-la, ele, marotamente, dava um jeito de sabotá-la. “A lancha tinha um macete na ignição no motor que Constantino não contava para os novatos. Então, o sujeito tentava, tentava e acabava desistindo, achando que o motor estava com defeito. E devolvia o barco para ele”, recorda, rindo, o filho do igualmente lendário mestre.

Além do presídio, praticamente todas as casas da Vila do Abraão foram erguidas ou reformadas com tijolo, areia e cimento trazidos, do continente, pela Tenente Loretti. E quando alguém precisava levar algo de volta, era sempre nela que embarcava.

Até que, um dia, o motor pifou de vez e a lancha foi rebocada para Angra dos Reis, para reparos.

No começo, tudo correu bem. O motor foi trocado, mas, com o fim do presídio e início de operações de balsas entre a ilha e o continente, não havia mais necessidade dos serviços da lancha na Ilha Grande.

O plano, então, passou a ser usá-la para levar turistas para passear na baía de Angra dos Reis. Depois, veio a ideia de transformá-la numa espécie de museu flutuante, com painéis contando a história daquele barco repleto de casos para contar.

Mas nem uma coisa nem outra jamais aconteceu.

Ao contrário, para frustração de Constantino e Natalino, logo a Tenente Loretti foi esquecida no píer da cidade e começou a apodrecer a céu aberto.

Durante muito tempo, Constantino pressionou os vereadores da cidade para que cumprissem a promessa de reformar do barco e, quase todos os dias, ia até o píer cuidar pessoalmente da lancha. Ligava o motor, acionava as bombas, lavava o convés e voltava para a ilha, amargurado.

Até que a saúde, já debilitada pela idade avançada, passou a impedir isso. E Constantino parou de visitar a lancha que ele tanto amava. O mesmo aconteceu com Natalino, mais tarde.

O sonho dos moradores da vila do Abraão sempre foi que a lancha que ajudou a escrever a história da ilha voltasse para lá e virasse um monumento na praça.

Mas isso jamais aconteceu nem nunca acontecerá, porque, embora o barco ainda exista, seu casco já está tão deteriorado que não suportaria o esforço sequer do transporte.

“Estruturalmente, a da Tenente Loretti está condenada”, diz um engenheiro naval que a viu recentemente no galpão da marina onde repousa – ao que tudo indica, para sempre.

Com a morte de mestre Natalino, não resta mais nenhum comandante vivo da lancha que, durante muito tempo, foi quase sinônimo da própria Ilha Grande.

E não resta a menor dúvida de que o próprio barco vai no mesmo e triste rumo.

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