Nenhum carioca tem dúvidas de que o mar que banha a parte central da cidade do Rio de Janeiro é uma baía – a Baía de Guanabara.
Também nenhum morador de Brasília duvida que a imensa concentração de água que dá contornos ainda mais bonitos à capital do Brasil seja um lago – o Paranoá.
Já os habitantes de Porto Alegre não sabem ao certo como chamar o principal cartão-postal da cidade: o Guaíba – que para alguns é rio; para outros, lago.
E essa polêmica já dura décadas.
Começou ainda na colonização da região, mas tomou força quando, em 1982, o governo do estado do Rio Grande do Sul (mais tarde, também seguido pela prefeitura de Porto Alegre), decretou que o Guaíba deveria ser oficialmente chamado de lago nas escolas e documentos oficiais – mas não necessariamente nas ruas, onde para boa parte da população da capital gaúcha o Guaíba continuou sendo o que sempre foi: um rio.
Contudo, estimulados por argumentos tecnicamente convincentes (e outros bem mais discutíveis), parte dos moradores de Porto Alegre também aderiu ao novo topônimo.
E o movimento do rio que virou lago foi ganhando adeptos, até se transformar em mais uma das preferidas discussões entre os porto-alegrenses – que, além de se dividirem entre torcedores do Grêmio e do Internacional, passaram a ter outras duas correntes divergentes: a dos que defendem a tese de lago e os que se recusam a deixar de chamar o Guaíba de rio.
E, ao que tudo indica, tal qual gremistas e colorados, jamais se chegará a um consenso.
“O Guaíba é um lago, porque, entre outras características, não possui margens paralelas e mais de 80% de suas águas ficam retidas”, defende o geólogo Rualdo Menegat, criador do Atlas Ambiental de Porto Alegre, que já se acostumou a ser contestado.
“O Guaíba tem desnível e curso d´água, portanto, é um rio”, diz Pedro Pesce, comodoro do Clube dos Jangadeiros, uma das grandes entidade náutica da cidade.
“Sob o ponto de vista técnico, tenho que concordar com os dois lados”, argumenta, diplomaticamente, o ex-presidente da seccional gaúcha Instituto de Arquitetos do Brasil, Tiago Holzmann. “O Guaíba tem características das duas coisas. É um rio, mas, também, é um lago”, desconversa.
“Não é nem uma coisa nem outra”, garante o velejador Alexandre Paradeda, pondo ainda mais lenha no churrasco do rio que virou lago, ou do lago que sempre foi chamado de rio. “O Guaíba é um estuário, porque é formado por diversos rios que nele deságuam”.
E tome polêmica.
Diante do impasse, muitos propuseram chamá-lo apenas de “Guaíba”, sem “rio” nem “lago”, já que para os porto-alegrenses o quase mar de água doce (mas meio barrenta) que banha a capital gaúcha é quase um membro da família – além de Patrimônio Ambiental da cidade e um ícone tão onipresente na paisagem local quanto a cuia e o chimarrão.
Também houve quem propusesse um referendo popular, uma votação na qual os próprios porto-alegrenses decidiriam como chamar o velho Guaíba, que sempre foi sinônimo da própria cidade.
Mas, como os dois lados, de certa forma, têm razão, acabou virando apenas mais uma interminável discussão, que até hoje embala as rodas de chimarrão.
Bem mais do que uma tola discussão, a polêmica sobre como classificar aquele volume d´água que batizou a própria cidade (a capital gaúcha não se chama “Porto” Alegre por acaso…) esconde outros motivos, muito mais valiosos do que a simples mudança no topônimo do Guaíba.
Por trás da mudança oficial estariam – como sempre, aliás – interesses financeiros, já que, como lago, as restrições ambientais às construções nas margens do Guaíba, uma faixa ultra nobre da cidade, seriam menores e bem mais flexíveis.
Enquanto, nas margens dos rios, as restrições às construções chegam aos 500 metros das margens, nos lagos, elas não passam dos 30 metros.
Daí o interesse na reclassificação do Guaíba – ficaria bem mais fácil erguer obras nas margens do rio que oficialmente passou a ser um lago.
A questão, portanto, não seria apenas de semântica, nem um blá-blá-blá à toa.
Havia grandes interesses envolvidos na mudança.
E é por isso que, até hoje, os porto-alegrenses não sabem ao certo se têm um rio ou um lago.
“A mudança oficial não teve nenhum valor prático, já que o Guaíba continua sendo o que sempre foi. Mas, financeiro, sim. E muito”, explica o advogado gaúcho Ottomar Ellwanger Júnior, que, nas horas vagas, gosta de navegar no que ele, bem como a maioria dos moradores de Porto Alegre, segue chamando de rio. “O motivo da mudança não foi científico. Foi comercial”, resume.
Como argumento para a mudança, o governo gaúcho se baseou em levantamentos técnicos sobre depósitos sedimentares, correntes contrárias e outros aspectos geográficos.
Em seguida, livros escolares foram alterados e as crianças passaram a aprender que seus pais, avós e bisavós sempre estiveram errados: o correto passou a ser chamar o rio de Lago Guaíba.
Só que boa parte dos porto-alegrenses jamais concordou com isso e continuou se referindo ao Guaíba pelo topônimo pelo qual ele sempre foi conhecido – uma canetada não poderia alterar a geografia.
A mudança, além de revoltar os porto-alegrenses mais conservadores (bem como os torcedores colorados – como passar a chamar o estádio Beira-Rio de “Beira-Lago”?), foi solenemente ignorada pelos que sempre consideram o Guaíba um rio, e – bah! – não se fala mais nisso!
Segundo a lógica reinante, o Guaíba só seria um lago se não houvesse uma saída para a Lagoa do Patos, que, por sinal, há quem defenda ser uma “laguna”, já que escoa para o mar – mas isso já é outra polêmica.
“A Lagoa dos Patos também tem entrada e saída de água e não é um rio. Então, porque o Guaíba não pode ser um lago?”, argumentam os defensores da tese de que o célebre rio gaúcho sempre foi chamado de forma errada.
Tempos atrás, até a Marinha do Brasil passou uma saia justa danada ao apresentar aos navegadores da cidade uma nova carta náutica do “Lago” Guaíba.
“Não é lago”, corrigiram os donos de barcos, na cerimônia. “É rio! Lago é uma porção de água cercada de terra por todos os lados e o Guaíba não é assim”.
O oficial encarregado da apresentação ficou sem saber o que dizer.
No festival de teorias, muitos porto-alegrenses preferiram não tomar partido. .
“Ninguém vai deixar de frequentar o Guaíba, ou de admirar com o seu pôr-do-sol magnífico, se ele for lago ou rio”, analisa o empresário gaúcho Waldemar Beer. “Guaíba já diz tudo”, resume.
Já uma professora gaúcha achou uma saída original e divertida para a questão: passou a dizer aos alunos que “o nome do lago é Rio Guaíba” – e agradou os dois lados.
Na duplicidade de opiniões, nem a própria definição da palavra indígena “Guaíba” (“encontro das águas”, em tupi guarani), ajuda, porque serviria para os dois casos.
Também historicamente, o Guaíba já foi grafado como rio e como lago nos antigos mapas.
E assim, quase quatro décadas depois da polêmica (mas tecnicamente embasada) canetada que oficializou a mudança, a dúvida continua.
Rio ou lago?
O que, afinal, é o Guaíba?
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