No final da década de 1970, o Brasil ainda vivia resquícios dos anos de chumbo da ditadura militar e praticamente desconhecia a expressão “crime ambiental”.
Foi nesse período que estas duas situações (ditadura e meio ambiente) se encontraram, depois que um estranho caso, nunca oficialmente explicado, aconteceu na Praia do Hermenegildo, no litoral do Rio Grande do Sul, em 31 de março de 1978.
Naquela data, quatro dias após uma violenta ressaca atingir a costa uruguaia e todo o litoral do extremo sul do Brasil, a Praia do Hermenegildo, no município de Santa Vitória do Palmar, praticamente na fronteira com o Uruguai, amanheceu com um forte cheiro vindo do mar e uma quantidade impressionante de peixes mortos.
Até cachorros e cavalos, que estavam na beira da praia, ficaram intoxicados.
A população local se assustou.
Mas, para as autoridades, tudo não passava de um fenômeno natural chamado “Maré Vermelha” – uma proliferação exagerada de algas marinhas, que libera toxinas e “sufoca” o mar, gerando mortandade de peixes, além de tingir as águas com um tom avermelhado.
O fenômeno já havia acontecido na região. Mas não com aquela intensidade.
Naquela manhã, as águas da Praia do Hermenegildo pareciam cobertas por uma película avermelhada, que desprendia fortes odores e dificultava a respiração das pessoas.
Estudiosos e alguns precursores do ambientalismo brasileiro começaram a chegar ao litoral gaúcho, para analisar o caso.
E um deles resolveu investigar a fundo a questão. Mas em outro sentido.
O historiador local Péricles Azambuja desconfiou que aquilo que estava acontecendo na praia poderia ser consequência de um vazamento de produtos químicos de algum navio em alto mar e resolveu checar.
Também conferiu os naufrágios recentes na região.
E foi assim que ele chegou ao Taquari, um cargueiro do Lloyd Brasileiro que deixara o porto do Rio de Janeiro com destino a Montevidéu, em 1971, levando uma carga de “produtos químicos” não especificados, da empresa Dow Química.
Ao atingir a região do Cabo Apolônio, na costa uruguaia, mas a apenas cerca de apenas 100 quilômetros da Praia do Hermenegildo, o Taquari encalhou e foi abandonado, com sua carga nos porões.
Apesar do incidente ter acontecido sete anos antes, havia um detalhe intrigante também revelado pela pesquisa do historiador: durante aquela mesma ressaca que atingira a Praia do Hermenegildo, dias antes de o mar se tornar quase tóxico, o casco do Taquari havia se partido em dois e despejando seu misterioso conteúdo no vizinho mar uruguaio.
Coincidência?
Não para o pesquisador, que começou a defender a tese de que o que havia acontecido naquela praia gaúcha não era um fenômeno natural e sim consequência do derramamento da suspeita carga do navio brasileiro abandonado na costa uruguaia.
Ao tomarem conhecimento do fato, outros pesquisadores aderiram a tese de que as correntes marinhas poderiam ter levado resíduos da misteriosa carga do Taquari até aquela praia.
Começou uma pressão para que a empresa dona da carga do navio, a poderosa multinacional Dow Química, divulgasse o que ele transportava.
A empresa negou categoricamente que a carga do Taquari fosse tóxica, mas estranhamente pediu que eventuais barris que fossem dar nas praias não fossem abertos.
O que eles continham?
Jamais se soube.
Até porque nenhum deles foi recuperado inteiro.
As suspeitas aumentaram ainda mais quando alguém lembrou que o então todo poderoso ministro da Casa Civil, general Golbery do Couto e Silva, era um ex-diretor da Dow Química, justamente na época em que o Taquari encalhara, o que poderia explicar a insistência do governo brasileiro em atribuir a culpa pelo que acontecera na Praia do Hermenegildo a um simples fenômeno natural, em vez de analisá-lo com mais profundidade.
Na época, ainda sob fortes resquícios militares no país, os ambientalistas não tinham nenhuma voz ativa, nem sequer o termo “ecologia” era conhecido.
Por isso, o governo limitou-se a emitir um documento, batizado de “Livro Branco”, no qual reafirmava que tudo não passara de uma ação da natureza.
Embora altamente questionável, foi a primeira vez que o governo brasileiro deu alguma satisfação a povo sobre algo ligado ao meio ambiente.
Contudo, dez anos depois, ainda insatisfeita com aquela versão oficial para o que ficou conhecido como o “Caso do Hermenegildo”, a Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul promoveu uma série de debates a respeito do tema.
Ouviu políticos, moradores do Hermenegildo e ambientalistas, então já reconhecidos como tal, e concluiu que houve mesmo um fenômeno natural naquela praia, naquele dia, como demonstraram claros indícios da chamada Maré Vermelha.
Mas concomitantemente ao vazamento do que quer que houvesse dentro do casco rompido do navio – uma perversa coincidência, já que um fenômeno natural acabou servindo para ocultar e mascarar um crime ambiental.
O governo, então, respirou aliviado.
Mas, a mesma sorte não tiveram os peixes e os animais da Praia do Hermenegildo naquele dia.
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