Muito tempo atrás, a construção do futuro barco do casal Elfriede e Jadyr Galera, no quintal da própria casa, nos arredores de São Paulo, não ia nada bem.

Depois de ter sido interrompida por oito anos por conta do nascimento do segundo filho e da absoluta falta de dinheiro para prosseguir com a obra, ainda veio a pior notícia: Elfriede estava com câncer, em estágio avançado.

Todos ficaram chocados.

Menos ela, que continuou ajudando o marido a construir o barco, um veleirinho de 29 pés, e sonhando com o dia em que ele iria, finalmente, para a água.

E ele foi, incríveis 25 anos depois de o casal ter começado a construí-lo e cinco após o início da doença dela. Que, infelizmente, de lá para cá, só fez progredir.

Mesmo assim, embora cada vez mais debilitada, já com metástase generalizada e medicamentos que não faziam mais efeito, Elfriede seguiu velejando, sempre que a combalida saúde permitia.

– É o meu melhor remédio, dizia. Talvez, o único.

A paixão de Elfriede pelos barcos começou cedo, quando ela conheceu o futuro marido, que também tinha o mesmo gosto.

Os dois só não tinham dinheiro para comprar um. A solução? Construí-lo. Mesmo os dois não entendendo bulhufas sobre construção naval.

Naquele mesmo ano, exatos 30 anos atrás, os dois foram passear na Marina da Glória, no Rio de Janeiro, e ali viram um veleiro que cabia bem nas humildes ambições do casal: um Samoa 29, criação do projetista carioca Roberto Barros, o Cabinho, para ser feito em casa.

Entusiasmados, compraram o projeto, que custava bem pouco e que chegou pelo correio, na forma de um monte de plantas e desenhos.

Pronto. Agora, só faltava construir o barco!

Ao saber da novidade, o pai de Elfriede, um típico alemão durão, logo interrompeu a conversa empolgada do jovem casal.

Ein augenblick (algo como “Um momento”, em alemão). Eu pensei que vocês fossem construir uma família, não um barco!

Longe de ser a sua intenção, o pai de Elfriede, naquele instante, acabaria batizando, involuntariamente, o futuro veleiro dos dois.

O barco se chamaria “Augenblick”, numa homenagem sapeca ao pai dela.

O próximo passo era pôr a mão na massa, pois, como não tinham dinheiro para pagar um estaleiro, decidiram que fariam tudo eles mesmos. Mas onde construiriam um barco, se moravam num apartamento?

A solução foi o quintal da casa da mãe de Jadyr, num subúrbio pobre de São Paulo.

A primeira ripa de madeira do futuro casco foi cortada em julho de 1989 e, dois meses depois, Elfriede descobriu que estava grávida.

Foi o primeiro “contratempo” na construção do veleiro.

Nicole, a primeira filha do casal, nasceu em abril de 1990, quando o Augenblick não passava de uma incompreensível pilha de ripas.

Por conta do bebê, do trabalho e da crônica falta de dinheiro, os dois só conseguiam se dedicar a construção do barco nos finais de semana.

E tudo o que sobrava do magro orçamento doméstico era transformado em “coisas para o barco”.

No seu 30o aniversário, Jadyr ganhou de presente da mulher dez quilos de pregos para prender as ripas do casco. E ficou emocionado.

Bem lentamente, o barco da família Galera foi tomando forma.

Três anos depois, o casco ficou pronto. Mas ainda faltava todo o resto.

Veio, então, o segundo “imprevisto”: Elfriede ficou, novamente, grávida e nasceu o segundo filho do casal, Patrick, hoje com 24 anos.

Com a família mais numerosa, tempo e dinheiro ficaram ainda mais escassos para o sonho de construir o barco – que foi coberto com uma lona e hibernou, por oito anos, no fundo do quintal da casa da mãe de Jadyr.

Mas, nos finais de semana, os dois sempre iam lá, erguiam a lona e davam, pelo menos, uma olhadinha no esqueleto do futuro veleiro.

Até que, um dia, a necessidade fez a família trocar o apartamento onde morava por um terreno na Grande São Paulo, onde eles construíriam uma casa. E nela havia espaço para o barco, que virou uma espécie de atração do bairro, já que o mar estava a quase 100 quilômetros de distância.

Com a proximidade entre a casa e o seu “estaleiro particular”, como gostavam de brincar com os amigos, Elfriede e Jadyr, passaram a trabalhar no barco com mais afinco, embora a falta de dinheiro para os materiais continuasse sendo um inimigo feroz do sonho do casal.

Elfriede, sempre a mais empolgada, ajudava o marido no que quer que fosse: de cortar madeira a aplicar resina. Sua habilidade como artista plástica ajudava.

Até que, anos depois, em 2010, quando o Augenblick amargava outro período de recesso por falta generalizada de recursos, veio a pior notícia: o câncer já havia se espalhado pelo corpo.

Os médicos deram apenas dois anos de vida para Elfriede.

Foi quando Jadyr intuiu que a construção do barco era a maneira mais eficaz de estimular a mulher a enfrentar aquela situação amargurante.

E resolveu acelerar a obra, para que ela, ao menos, pudesse ver o Augenblick pronto.

Trocou o carro por outro mais barato, pegou dinheiro emprestado e os amigos ajudaram, comprando materiais e equipamentos para o veleiro.

Entre uma sessão e outra de quimioterapia, Elfriede passou a dedicar praticamente todo o seu tempo à tarefa de terminar o Augenblick, graças à injeção financeira alavancada pelo marido.

Fazia isso com tamanho prazer que não se sentia doente.

Ao contrário, irradiava alegria e vibrava a cada novo parafuso colocado no barco – que passou a ser a razão da sua vida, depois dos filhos e do marido.

Mesmo doente, Elfriede também participou ativamente de uma das tarefas mais árduas do projeto: o enchimento da quilha do veleiro com chumbo – o que, por uma questão de economia, eles fizeram da maneira mais caseira possível.

Jadyr comprou uma tonelada de sucata de pequenos chumbinhos, desses usados para balancear rodas de automóveis, e pacientemente os derreteu, até ficarem líquidos. Em seguida, despejou tudo dentro de uma fôrma de fibra de vidro, que deu forma à quilha.

Foi uma operação demorada, cansativa e perigosa, porque a casa virou quase uma fundição doméstica, a base de maçarico e botijão de gás.

Mas deu certo.

E rendeu uma economia de cerca de R$ 2 500 ao casal, o que, para eles, naquela frenética reta final do projeto (e correndo contra o tempo, por conta da evolução da doença dela) representava muito.

Na época, quando perguntavam a Elfriede se ainda faltava muito para o barco ficar pronto, ela respondia, sempre de bom humor:

— Uns R$ 10 000, mais ou menos — trocando o dinheiro por tempo, porque, afinal, agora, era isso o que contava.

Foi quando veio a ideia de fazer um crowdfunding, sistema de captação de doações na internet, para buscar os recursos financeiros que faltavam para terminar o barco.

Para surpresa geral, em menos de um mês o casal conseguiu o dinheiro que precisava para terminar o veleiro e colocá-lo na água, através de doações espontâneas de pessoas que eles sequer conheciam, mas que ficaram sensibilizadas com a história de Elfriede, cuja doença já estava explícita na cabeça sem cabelos, consequência das praticamente inúteis sessões de quimioterapia.

Ela retribuía as doações com mandalas que fazia em casa, nos intervalos dos tratamentos quimioterápicos e dos trabalhos no barco.

Ao final, ganhou uma legião de novos amigos e uma profunda admiração coletiva, pelo otimismo e por não se deixar abater pela doença, como quase sempre acontece.

Até que, em junho de 2015, após inacreditáveis 25 anos de trabalhos, o Augenblick, finalmente, ficou pronto e foi para a água, em Ilhabela, pondo fim a uma exemplar história de perseverança na busca de um sonho, que começou lá atrás, em 1988.

Depois disso, o perseverante veleiro da família passou a ser usado pelo casal sempre que os tratamentos de saúde de Elfriede permitiam.

Virou uma espécie de “terapia do mar”, a única, naquele instante, que ainda surtia algum efeito nela.

– Quando pisa naquele barco, a Elfriede se transforma, dizia o marido Jadyr. Esquece a doença, o sofrimento, até a dor, que só costuma passar com morfina.

A paixão de Elfriede pelo barquinho que ajudou a construir ao longo de um quarto de século era tão intensa que ela logo decidiu que, ao morrer, suas cinzas seriam jogadas ao mar, a partir do próprio veleiro.

E é isso que irá acontecer, em breve.

Elfriede Galera, a “Frida”, morreu ontem, 30 de julho, aos 64 anos, metade deles dedicados ao sonho (felizmente realizado) de construir um barco.

 

 

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