A cada ano, em todo o mundo, cerca de 700 grandes navios, entre cargueiros, petroleiros, porta-conteinêres e ex-luxuosos transatlânticos de passageiros, são desativados, desmantelados e transformados em sucata.

Contudo, mais da metade deles acabam os seus dias num só lugar: uma pobre e lamacenta praia da Índia, chamada Alang, dona do maior desmanche naval do planeta – e que, por isso mesmo, é considerada o maior cemitério de navios do mundo.

Quase que diariamente, velhos navios chegam a Alang para serem desmanchados, reciclados e vendidos como ferro-velho – um serviço necessário e economicamente útil, não fosse a forma como ali isso é feito: manualmente, por milhares de trabalhadores quase escravizados, que ganham uma ninharia para demolirem navios inteiros apenas com as próprias mãos.

O que os pobres trabalhadores dos estaleiros de Alang fazem beira o inacreditável.

Dependendo do tamanho do navio, o prazo para ele desaparecer por completo varia entre um mês e um ano, devorado pelas ágeis mãos dos trabalhadores de Alang, que atuam feito formigas – isoladamente, cada um deles pouco ou nada poderia fazer frente a hercúlea tarefa de desmontar um navio inteiro, mas, juntos, operam um fenômeno.

Vão devorando o navio aos poucos, até que não sobra nada – só toneladas de placas e peças de aço.

O serviço começa com o encalhe proposital dos navios na praia.

Os estaleiros aproveitam as marés mais altas para arremessar os navios na direção da praia, até que eles encalhem no fundo raso e lamacento de Alang.

Quanto mais perto da areia ele ficar, mais fácil será o trabalho de desmanche, porque encurtará a distância que os trabalhadores terão que cumprir entre o barco e o depósito, trazendo, no braço, todas as partes desmontadas do navio.

Ainda assim, quando a maré baixa, os navios ficam encalhados a centenas de metros dos depósitos, e o caminho entre uma coisa e outra vira um penoso lamaçal que dificulta ainda mais a mobilidade dos trabalhadores.

Uma simples placa de aço de meia dúzia de metros quadrados pesa cerca de meia tonelada, mas, ainda assim, é carregada, nos ombros, por uma dezena de trabalhadores, chafurdando na lama, do navio até o depósito.

São como escravos. Um trabalho insano, pago com migalhas de rúpias indianas.

Na média, um trabalhador de Alang recebe o equivalente a menos de R$ 15,00 por dia, para 14 horas seguidas de trabalho.

Mesmo assim, sobram candidatos vindos de outras áreas da região da Índia, o que explica porque quase 90% da população de Alang é masculina.

Cerca de um terço deles são meninos, entre 15 e 17 anos de idade, que recebem menos ainda – embora trabalhem igual aos adultos.

As frouxas leis trabalhistas nos estaleiros de Alang sempre geraram, e continuam gerando, reclamações e protestos no mundo inteiro.

“Alang é um bom exemplo do que de pior a globalização pode trazer para a humanidade”, diz um defensor das questões trabalhistas do setor. “É para onde as nações desenvolvidas mandam o seu lixo, que, hipocritamente, julgam que irá ajudar os países mais pobres a se desenvolverem”.

Por conta da mão de obra baratíssima – e do fato de que praticamente tudo é feito, literalmente, a mão -, o desmanche de um navio em Alang chega a custar cem vezes menos do que na Europa, o que explica a quantidade de navios que são enviados para lá.

Um deles foi o lendário porta-aviões brasileiro Minas Gerais, durante décadas o maior e mais famoso navio do Brasil.

Tudo o que é retirado dos navios é vendido ali mesmo, o que torna as ruas de Alang uma interminável sucessão de ferros-velhos, visitados por compradores do mundo inteiro.

É um negócio que fomenta muito dinheiro, mas apenas para os donos dos estaleiros – os mesmos que não costumam permitir fotografar nem filmar os trabalhadores, para que não fique documentado a forma precária como eles trabalham.

Poucos usam luvas e capacetes e quase todos vestem sandálias de borracha, em vez de botas adequadas.

Os operadores de maçaricos, instrumento básico na atividade, passam o dia desviando das faíscas que pulam das chapas de aço, sem, muitas vezes, sequer óculos de proteção.

Em caso de acidente, algo tragicamente frequente em Alang, o hospital mais próximo fica a mais de 50 quilômetros de distância. E, quase sempre, não é possível socorrer o acidentado a tempo.

“Da maneira como é feito em Alang, o desmanche manual de navios é uma das atividades potencialmente mais perigosas do mundo”, garante um técnico da Ong NGO Shipbreaking Plataform, especializada nas questões trabalhistas e ambientais nos desmanches de navios.

O desmanche de navios em Alang começou em 1983, quando o governo indiano decidiu criar empregos para os trabalhadores pouco qualificados da região.

Mas, com a consequente exploração explícita dos trabalhadores pelos estaleiros, acabou se transformando em um problema social, que parece não ter solução.

Na praia, quando acabam os turnos dos trabalhadores, as poucas mulheres de Alang entram em ação e saem vasculhando a areia, em busca de sobras de peças e pedacinhos de aço soterrados.

Mas quase sempre acabam não levando nada para casa, porque a atividade é proibida e os guardas dos estaleiros confiscam tudo o que elas coletam.

A miséria e a exploração imperam em Alang. Em todos os aspectos.

E não é só a questão social que incomoda.

Da forma precária e primitiva como os desmanches de navios são feitos em Alang, os impactos ambientais também preocupam.

Antes de serem desmanchados, os navios não são devidamente descontaminados.

O máximo de cuidado que os estaleiros tomam é mandar os trabalhadores esvaziarem os tanques de combustível, a fim de evitar explosões quando forem acionados os maçaricos.

Com isso, vazamentos de resíduos na praia são comuns e os trabalhadores ainda têm que lidar com materiais tóxicos, como o amianto, comprovadamente causador de câncer, presente nos navios mais antigos.

Mas os resignados trabalhadores braçais de Alang não reclamam.

Todos os dias, de domingo a domingo, eles precisam ganhar o bastante para ter o que comer no dia seguinte, quando um novo navio chegará à praia para ser devorado por eles, com a mais rudimentar das ferramentas: as suas próprias mãos.

O mesmo acontece em estaleiros dos países vizinhos, Paquistão e Bangladesh, onde as condições de trabalho são igualmente desumanas.

Por isso, algumas empresas marítimas mais sérias, quando precisam desmanchar seus navios, recorrem a estaleiros de países do Primeiro Mundo, onde pelo menos isso não acontece.

Mas nem sempre conseguem, porque, às vezes, o próprio transporte do navio a ser demolido até lá pode gerar problemas.

Foi, por exemplo, o que aconteceu, no passado, com o encouraçado brasileiro São Paulo, da Marinha do Brasil, que desapareceu no meio do Atlântico quando estava sendo rebocado para um desmanche na Inglaterra – CLIQUE AQUI para ler esta história, que ilustra bem os riscos que os navios correm ao serem rebocados, e que faz parte do livro Histórias do Mar – 200 casos verídicos de façanhas, dramas, aventuras e odisseias nos oceanos.

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