Em 20 de agosto de 1944, o navio cargueiro americano SS Richard Montgomery ancorou na entrada do Rio Tâmisa, na Inglaterra, com uma carga, literalmente, bombástica: cerca de 9 000 bombas que seriam usadas na Segunda Guerra Mundial, estão em curso na Europa.
E até hoje, quase 80 anos depois, continua no mesmo local, ainda com boa parte daqueles explosivos no seu interior, para terror dos moradores da pequena cidade inglesa de Sheerness, diante da qual ele parcialmente afundou, depois de encalhar em um banco de areia, bem na entrada do principal rio da Inglaterra.
Na época, a retirada da explosiva carga do SS Richard Montgomery começou a ser feita três dias após o acidente.
Mas logo teve que ser interrompida, porque o casco do navio passou a apresentar rachaduras.
Temendo a explosão da sua carga, as equipes de resgate abandonaram o local.
Para sempre.
Hoje, das 6 100 toneladas de bombas que havia no navio, cerca de 1 400 toneladas permanecem dentro dele, sob risco de explosão, mesmo após tanto tempo.
Não seria um problema tão sério assim, já que navios que afundaram durante a guerra com explosivos a bordo não foram poucos, não fosse o local onde o naufrágio ocorreu, e as condições em que se encontram os escombros do navio.
O SS Richard Montgomery encalhou e afundou apenas parcialmente bem diante de Sheerness, onde hoje vivem 12 000 pessoas e onde um gaiato outdoor, bem na entrada na cidade, dá as boas-vindas aos visitantes, desejando que eles tenham “uma visita bombástica” – coisa do típico sensor de humor inglês.
Mas o fato é que, por conta daquele navio naufragado, ninguém dorme totalmente tranquilo na cidade.
Até hoje.
Quase 80 anos depois, os mastros do SS Richard Montgomery seguem visíveis fora d´água, já que o local é tão raso que não permitiu que o navio ficasse totalmente submerso – e isso torna a questão ainda mais delicada, pelo risco de outros barcos colidirem com o obstáculo.
Além disso, o SS Richard Montgomery afundou bem no estuário do Rio Tâmisa, que registra um movimento expressivo de vai e vem de navios.
Tempos atrás, dois deles só não colidiram com os restos do naufrágio porque, no último instante, conseguiram desviar a tempo.
Para contornar o problema, desde o final da Segunda Guerra, as autoridades marítimas inglesas criaram uma “área de exclusão” em torno do local do naufrágio, sinalizada com boias e cartazes ameaçadores, avisando que a aproximação de pessoas é terminantemente proibida.
E a área passou a monitorada por radares, 24 horas por dia.
É assim até hoje, 79 anos depois.
Mas, por que não removem as bombas de dentro do velho navio?
A resposta é: não é algo tão simples assim.
Depois de quase oito décadas debaixo d´água, o estado do SS Richard Montgomery é precário e sua estrutura está seriamente comprometida.
Por isso, qualquer ação mais efetiva no navio poderia gerar o colapso do que resta do seu casco, e o movimento poderia acionar uma das bombas, já que parte delas foi embarcada com seus disparadores instalados.
Bastaria uma bomba ser detonada por um movimento qualquer nas ferragens para disparar todas as demais, com consequências imprevisíveis para toda a área próxima ao naufrágio.
Em julho de 1967, uma operação similar, feita em um navio também da Segunda Guerra Mundial naufragado no Canal da Mancha, gerou uma explosão equivalente a um terremoto de 4,5 na escala Richter, abriu uma cratera de seis metros de profundidade no leito oceânico e gerou pânico nos moradores da região.
Também a explosão controlada das bombas que restam dentro do SS Richard Montgomery é algo fora de questão.
Estudos já mostraram que, caso o navio viesse a explodir, a quantidade de bombas que há nele geraria uma coluna de água com cerca de 300 metros de altura, lançaria detritos nove vezes mais alto que isso, e geraria uma espécie de tsunami, com ondas de até cinco metros de altura – o bastante para inundar a cidade de Sheerness, que também sofreria danos em suas casas, com janelas e vidraças estilhaçadas.
“Para explodir as bombas que há no navio seria necessário evacuar todos os moradores da cidade”, apontou um relatório técnico, feito anos atrás.
“Por isso”, concluiu o documento, “a melhor medida ainda é a não intervenção. Deixar o navio como ele está”.
O SS Richard Montgomery era um Liberty Ship, um tipo de navio cargueiro criado nos Estados Unidos para uso na Segunda Guerra Mundial, que usava métodos pioneiros de construção, como a união das chapas de aço com solda, em vez dos tradicionais rebites, e montagem em forma de linha de produção, como os automóveis, tendo, inclusive, mulheres como operárias.
Isso permitia uma construção incrivelmente rápida, ainda que não muito confiável, como foi o caso do SS Richard Montgomery, que se partiu ao meio depois de encalhar em um simples banco de areia.
Apesar disso, alguns Liberty Ships duraram muito.
Um deles foi o cargueiro Robert Peary, que, no entanto, ficou famoso por outro aspecto: foi o navio construído em menor tempo da História, já que levou apenas inacreditáveis quatro dias para ficar pronto.
Em 2002, durante as Olimpíadas de Londres, uma equipe de agentes especiais da polícia inglesa chegou a ficar de plantão no entorno do naufrágio do SS Richard Montgomery, porque havia o temor que ele pudesse ser usado como matéria-prima para um ataque terrorista – bastaria um drone despejar uma simples bombinha sobre os escombros do navio para a sua carga letal cuidar do resto.
Mas, talvez, um dia, essa aparente tranquilidade tenha que ser quebrada.
Tempos atrás, o então prefeito de Londres, que, depois, virou primeiro ministro da Inglaterra, Boris Johnson, tinha planos de erguer um novo aeroporto no estuário do Rio Tâmisa, bem próximo ao local onde repousam os restos do SS Richard Montgomery.
Mas, para que isso acontecesse, a primeira providência teria que ser a remoção do navio, o que gerou um protesto em dobro dos moradores de Sheerness – que não queriam saber nem de uma coisa (o aeroporto), muito menos da outra (a remoção do navio-bomba).
Não se sabe o quanto a questão do navio pesou na decisão do governo, mas o novo aeroporto não chegou a sair do papel.
Recentemente, porém, técnicos do governo inglês concluíram que era preciso remover, ao menos, os três mastros do navio, porque eles estariam forçando a estrutura combalida da embarcação.
Mas os trabalhos tiveram que ser suspensos logo no primeiro dia, porque foram encontradas bombas até no entorno dos escombros.
Agora, ninguém sabe se a operação será retomada ou simplesmente cancelada.
“É melhor que fique assim”, diz um morador da cidade. “Melhor conviver com uma bomba adormecida do que tentar desarmá-la”.
Por essas e outras, há quase 80 anos, ninguém dorme 100% tranquilo em Sheerness.
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