No último dia do mês de março de 2021, um grupo de pescadores cearenses encontraram uma espécie de canoa de fibra de vidro à deriva no alto-mar, a cerca de 1 000 quilômetros da costa do Ceará.

Mas, bem mais surpreendente do que aquele achado era o que havia dentro do barco: os corpos de dois homens e uma mulher, em adiantado estado de decomposição, com alguns ossos à vista e já sem feições – além de uma carteira contendo cédulas de dinheiro em moedas africanas, um aparelho GPS, um relógio ordinário e nada menos que 27 celulares, todos inutilizados pelo longo contato com a água salgada empoçada no fundo do casco.

Acionada pelos pescadores, a Marinha do Brasil resgatou o barco – que tinha cerca de quatro metros de comprimento, e nenhum meio de propulsão, nem vela nem motor – e o levou para perícia pela Polícia Federal, em Fortaleza, onde o barco e os corpos chegaram no dia seguinte, 1º de abril de 2021.

E dali nunca mais saíram.

Nem tampouco jamais foram identificados.

De onde viera aquele barco?

Por que ele continha tantos aparelhos celulares?

O que aconteceu com aquelas três pessoas?

E, sobretudo, quem eram elas?

Estas perguntas jamais tiveram respostas da polícia brasileira.

A única coisa que a Polícia Federal do Ceará, a quem coube a investigação, concluiu no inquérito, que se arrastou por quase dois anos, possivelmente esquecido em alguma gaveta do departamento, foi que as vítimas eram originárias da África – uma dedução quase óbvia, face ao que havia na carteira encontrada dentro da canoa: dois cartões bancários, um de uma instituição financeira do Togo e outra do Mali, além de algumas cédulas de ouguiya, moeda corrente da Mauritânia, francos CFA, usados em uma dúzia de países africanos (inclusive o próprio Togo e Mali), alguns dólares e euros, tudo em pequenas quantidades.

Além disso, aquelas pessoas eram negras, como pode ser comprovado pelo que restava de seus cadáveres, dentro do barco. Mas, quem eram elas?

Embora houvesse boas pistas a serem seguidas (os cartões bancários, os celulares, o GPS, e até dois números de telefones – um da França, outro da Espanha -, que estavam em uma anotação dentro da tal carteira, e que poderiam ajudar a esclarecer a origem, destino e propósito daquele grupo), a Polícia brasileira pouco ou nada fez para descobrir a identidade daquelas três pessoas – nem como ou por que elas vieram parar no litoral brasileiro.

Ao contrário disso, a investigação limitou-se a apontar hipóteses criminais, e especular se aquelas pessoas não estariam envolvidas com o tráfico ou contrabando de seres humanos, e se havia indícios de algum cidadão brasileiro na operação – quando todas as evidências apontavam para simples infelizes africanos, que teriam morrido tentando chegar às Ilhas Canárias, porta de entrada para muitos imigrantes ilegais que querem chegar à Europa.

A própria região onde o barco foi encontrado, um sabido ponto de confluência de correntes marítimas que vêm da África para o Brasil, já sugeria a sua procedência, uma vez que, como não tinha velas nem motor – possivelmente perdidos ou danificados durante a travessia -, ele chegou ali à deriva, por obra apenas das correntezas, muito tempo depois.

A responsável por isso seria a implacável Corrente Equatorial Sul, que cruza o Atlântico, da costa ocidental da África até o Nordeste brasileiro, onde se divide em duas, e uma delas segue justamente na direção do Ceará, onde o barco foi encontrado.

Com frequência cada vez maior, imigrantes ilegais africanos vêm usando a chamada Corrente das Canárias, uma espécie de variante da Corrente Equatorial Sul, para tentar chegar àquelas ilhas, que, por pertencerem à Espanha, são uma espécie de porta de entrada para Europa. Mas alguns não conseguem.

Quando os caprichos da natureza os fazem desviar da rota ou passar reto pela última ilha do arquipélago, a de El Hierro – sem que, por alguma razão (pane no motor, queda do propulsor no mar, perda das velas), consigam se movimentar por conta própria -, só restará uma imensidão de mar pela frente, até o outro lado do Atlântico.

E praticamente ninguém sobrevive a uma travessia dessas.

Foi o que aconteceu, em 2021, com um precário barco registrado na Mauritânia, que foi parar na longínqua ilha de Tobago, entre a América do Sul e o Caribe, com 15 ossadas humanas a bordo – todas de imigrantes que queriam chegar às Canárias.

Eles haviam sido tragicamente abraçados pela Corrente Equatorial Norte, a mesma usada por Cristóvão Colombo para chegar às Américas, em 1492.

Muito possivelmente, a variante Sul desta mesma corrente foi a responsável por trazer para a costa cearense os três infelizes ocupantes daquela canoa, cujos corpos jamais foram devolvidos aos seus familiares pela simples razão de que nunca foram devidamente identificados pela Polícia.

Não fora a primeira vez que barcos à deriva vindos da África foram dar no litoral brasileiro.

Nem a primeira vez que chegam trazendo apenas cadáveres, jamais identificados.

Em março de 2014, dois esqueletos humanos foram encontrados dentro de um barco igualmente precário no litoral do Amapá, no que ficou conhecido como “O Barco das Ossadas”.

Apesar de algumas peculiaridades daquela embarcação – feita com o casco de um veleiro cortado, mas ainda com o nome do fabricante, e transformado em canoa -, fornecerem meios para uma investigação mais profunda, nada foi feito, e o caso acabou sendo arquivado.

E os restos daqueles dois homens, esquecidos em um depósito policial qualquer.

Já os nove corpos que foram achados dentro de outro barco, encontrado na costa da Pará, em abril deste ano, ao menos mereceram um enterro: foram sepultados na capital paraense dias depois, sem, porém, nenhuma identificação.

Ao que tudo indica, lá permanecerão para sempre, porque a investigação sobre a procedência daquelas pessoas tampouco avançou desde então.

No caso dos três cadáveres da canoa que foi parar no mar do Ceará, três anos atrás, apesar das pistas que poderiam ter sido seguidas, a fim de revelar suas identidades e apontar se pertenciam a vítimas do tráfico de pessoas (como aqueles 27 celulares a bordo sugeriam, já que os criminosos costumam confiscar os aparelhos das pessoas que transportam), ou se elas próprias eram traficantes -, o destino foi o mesmo: o esquecimento, já que o caso foi arquivado, sem nenhuma conclusão.

Quem eram aquelas pessoas?

De onde vieram?

Como e por que morreram?

A macabra canoa encontrada à deriva no mar do Ceará virou mais um caso de algo bizarro trazido pelo mar, e jamais explicado.

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