O menino nigeriano Eyitope Aiyegbusi tinha um sonho: ser jogador de futebol.

Mas, órfão de pai desde os três anos de idade, doado pela mãe (que não tinha condições de cria-lo) a uma amiga que vivia pior ainda na Libéria, sem comida nem dinheiro para nada, o seu futuro estava seriamente comprometido.

Mas ele tinha fé em Deus, herança da mãe religiosa, e decidiu ir embora, em busca de uma vida menos sofrida e mais esperançosa.

Aos sete anos de idade, Eyitope passou a perambular, sozinho, pela África, dormindo nas ruas, fugindo da Polícia (porque não tinha autorização para viajar) e comendo apenas o que alguém lhe desse.

Passou pelo Quênia, Tanzânia e Moçambique.

Até que chegou à África do Sul, onde foi preso, por falta de documentos.

Levado pela Polícia, passou dois meses detido – mesmo sendo apenas um garoto.

A delegada que o deteve queria saber se ele estava envolvido na venda de drogas. Eyitope, que sobrevivia lavando pratos e dormindo nas ruas de Johanesburgo, contou sua história.

A policial se sensibilizou, o soltou e fez ainda mais por aquele garoto solitário: deu um jeito de conseguir documentos (forjados), que passaram a atestar que ele era de Serra Leoa (e não da Nigéria, já que não tinha nenhum documento) e se chamava “Gofu Felix Corleoma” – nome que passou a ser o seu.

Com isso, Eyitope passou a ter, ao menos, tinha um documento.

E agradeceu a Deus por isso.

Mas a vida nas ruas de Johanesburgo também não lhe dava perspectivas de futuro, muito menos como jogador de futebol.

Foi quando Eyitope (agora Gofu), decidiu ir embora, de novo, desta vez não apenas de país, mas da África.

Conseguiu que um amigo lhe comprasse uma passagem de trem até o porto de Durban, e ali colocou o seu plano em prática: embarcar em um navio, para tentar a vida em outro canto do mundo.

Como clandestino.

Com apenas uma garrafa de água e um punhado de açúcar no bolso – único “alimento” que teria enquanto estivesse escondido dentro de algum navio -, Gofu foi para o porto e escolheu aleatoriamente o cargueiro de bandeira panamenha (mas tripulação chinesa), Aldebaran II, que estava sendo carregado com engradados de comida através de um guindaste, e se agarrou nos fardos.

Içado, embarcou sem que ninguém o visse.

Era a noite de 16 de dezembro de 2000, e começava ali a nova vida de Gofu.

Que, no entanto, quase a perdeu por isso.

Uma vez a bordo, Gofu se esgueirou pelo convés e entrou na primeira porta que viu.

Ela dava em uma escada, que o levou aos porões do navio.

Ali, ele se escondeu debaixo de uma pilha de cordas e ficou aguardando a partida do cargueiro, que, para sua sorte – que também não tinha a menor ideia de para onde aquele navio seguiria – aconteceu naquela mesma noite.

Durante uma semana, Gofu permaneceu escondido no porão do navio, sobrevivendo apenas da garrafa de água e do açúcar que tinha no bolso.

Mas, quando a fome apertou, decidiu se entregar, já que também sabia que estava longe da África, de onde tanto queria fugir.

Quando viu passar um tripulante, saiu do esconderijo e pediu ajuda.

O sujeito, um grego que falava um pouco de inglês, único não chinês da tripulação, ficou estupefato e avisou o comandante do navio, Yao Ren Fun – que, depois de interrogar o garoto, mandou que ele fosse colocado em uma espécie de cela, com grades de ferro, que havia no porão do navio. Gofu estava preso.

Mas agora, ao menos, sendo alimentado.

E ele agradeceu novamente a Deus por isso.

O nigeriano passou uma semana trancado naquela cela, enquanto o navio navegava, rumo aos Estados Unidos.

Mas ele não sabia para onde estava indo.

Tampouco o que lhe aguardava em seguida.

Na madrugada do último dia do ano, 31 de dezembro, o Aldebaran II estancou no meio do mar e Gofu foi acordado, retirado da cela e levado para o convés, por um tripulante chinês.

Lá, encontrou o comandante Yao Ren Fun, que lhe ordenou pular do navio – uma forma de se livrar daquele problema, já que, pelas leis, os próprios navios são responsáveis por eventuais passageiros clandestinos.

Gofu se desesperou e se agarrou a grade do convés, enquanto alguns tripulantes tentavam atirá-lo à força no mar.

Mas o máximo que conseguiu foi receber um colete salva-vidas (cujo nome do navio foi retirado, para não deixar pistas) e um tonel vazio, a título de balsa, ao qual foi amarrado.

E foi atirado ao mar.

Mesmo não sabendo nadar.

Uma vez na escuridão do mar, vendo o navio ir embora e bebendo muita água, Gofu passou a rezar.

Pedia a Deus que o tirasse daquela situação, ou o fizesse morrer rápido, para não sofrer demais.

Foi uma noite traumática e interminável.

Quando o dia amanheceu, o último do ano 2000 – enquanto o mundo se preparava para celebrar, com muita festa, a chegada do século 21 -, a situação de Gofu ficou pior ainda: alguns peixes passaram a bicar sua pele, gerando doloridas feridas.

Mas isso não o angustiava tanto quanto não saber por quanto tempo ainda viveria.

Agarrado ao tonel, no meio do oceano, sem nenhum barco ou terra à vista, ele chorava, enquanto conversava mentalmente com Deus e pedia uma salvação.

E ela veio, horas depois.

Na tarde daquele dia, pai e dois filhos, pescadores do litoral do Rio Grande do Norte, discutiam se retornariam para terra firme para a festa de fim de ano, ou continuariam pescando, quando um deles, contrariado, saiu da cabine para espairecer do lado de fora do barco.

Ao fazer isso, viu um tambor flutuando na água.

E decidiu pegá-lo, porque haveria de ter alguma utilidade.

Apesar do pai ser contra aquela ideia, um dos filhos aproximou o barco daquele tonel à deriva.

E viu que, agarrado a ele, havia um garoto negro, àquelas alturas já quase afogado.

Após quase 12 horas no mar, Gofu estava milagrosamente salvo, embora isso contrariasse todas as probabilidades.

Para ele, fruto inequívoco da vontade de Deus

Resgatado – mas sem entender uma palavra do que aqueles pescadores diziam, sequer onde estava -, Gofu foi levado para a praia de Tibau do Sul, no litoral do Rio Grande do Norte, e de lá encaminhado à Polícia – quando, enfim, entendeu que estava no Brasil, a “Terra do Futebol”, esporte que ele tanto amava.

Na sua cabeça, aquilo também só poderia ser obra de Deus.

E ele teve absoluta certeza disso quando, dias depois, foi procurado pela Arquidiocese da Igreja Católica de Natal, cujo arcebispo, Dom Heitor de Araújo Sales, ouvira a notícia do incrível resgate de Gofu no mar, e decidiu ajuda-lo.

Mais que isso, o religioso – a quem Gofu passou a chamar de “pai” – resolveu “adota-lo” de certa forma, oferecendo casa e apoio jurídico, para que ele permanecesse legalmente no Brasil.

Tempos depois, Gofu conseguiu cidadania brasileira, baseado no argumento de que não tinha mais sequer uma pátria para chamar se sua.

Em Natal, Gofu também conseguiu realizar o sonho de jogar futebol, embora não por muito tempo.

Após duas temporadas atuando em pequenos times locais, casou, teve duas filhas e decidiu procurar empregos mais sólidos.

Trabalhou como sapateiro, vigia noturno, porteiro de escola, e o que mais lhe oferecessem, sempre agradecendo a Deus por tudo, especialmente por estar vivo.

Pouco antes disso, a Polícia Federal brasileira ficou sabendo que o navio do qual Gofu fora atirado ao mar faria uma parada no porto de Itaqui, em São Luiz, no Maranhão, e determinou que sua tripulação fosse interrogada.

O próprio Gofu fez a identificação dos envolvidos: nove chineses, incluindo o comandante Yao Ren Fun.

A princípio, ele negou que aquilo tivesse acontecido.

Mas, depois, ao cair em contradição com o que disse outro suspeito, imputou a decisão de lançar o clandestino ao mar ao subcomandante Yang Yu Bin, que, no entanto, era seu subordinado.

No seu depoimento, o comandante do Albebaran II também alegou que havia aproximado o navio da costa, para que Gofu “pudesse nadar até uma praia”.

Mas foi contradito pelos registros de navegação do próprio navio, que mostraram que, naquela noite, o cargueiro navegava a 55 quilômetros da costa.

Com base nisso, os envolvidos foram presos preventivamente, acusados de tentativa de homicídio.

Mas não passaram muito tempo na cadeia.

Logo, foram soltos, passaram a responder ao processo em liberdade, saíram do país e nunca mais voltaram.

Ninguém foi punido pela atrocidade cometida contra aquele garoto, que só não morreu porque – como sempre disse – “Deus não permitiu”.

Mesmo assim, Gofu não guardou mágoas dos seus algozes.

Ao contrário, cada vez mais religioso, vivendo até hoje em Natal em uma casa da Arquidiocese local, diz que gostaria de reencontrar o comandante chinês, não para se vingar, mas para pedir desculpas por ter invadido o seu navio.

E também pedir que ele não fizesse aquilo com outras pessoas.

“Deus nos ensinou a amar o próximo”, diz. “Rezo todos os dias por ele”.

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