No final de 1914, Perce Blackborow era um jovem marinheiro, de 18 anos de idade, cujo barco no qual trabalhava havia acabado de afundar, na costa do Uruguai, sem maiores consequências aos seus tripulantes.

Na capital uruguaia, enquanto aguardava a chegada de outros barcos, a fim de conseguir uma vaga, Perce conheceu o marinheiro americano William Bakewell, que também estava desempregado.

E os dois logo desenvolveram uma estreita amizade.

Foi também em Montevidéu que William e Perce ficaram sabendo da chegada, no quase vizinho porto de Buenos Aires, do barco do explorador Ernest Shackleton, que estava a caminho da Antártica e buscava tripulantes.

Os dois rapidamente atravessaram o Rio da Prata, que separa o Uruguai da Argentina, e se inscreveram para as vagas.

O próprio Shackleton conduziu as entrevistas com os candidatos e, ao final, deu o seu veredito: Bakewell, um marinheiro mais velho e experiente, estava contratado; mas o jovem Perce Blackborow, não – era jovem demais para a dura empreitada que o Endurance, barco de Shackleton, teria pela frente, nos bravios mares da Antártica.

Mas Perce acabaria embarcando na viagem – como clandestino, acobertado pelo amigo Bakewell.

Pouco antes de o Endurance partir de Buenos Aires, Perce se escondeu no armário da cabine do amigo e ali ficou por três dias, sendo alimentado pela comida que Bakewell desviava da cozinha.

Só quando o Endurance já navegava a muitas milhas de distância da costa argentina – o que tornava inviável qualquer retorno -, é que Perce se reapresentou a Shackleton, agora na condição de clandestino a bordo.

O irlandês ficou furioso, esbravejou por longos minutos, mas, sem outra alternativa que não fosse retornar – ou atirar o intruso ao mar -, concordou que o jovem marinheiro, que além de audacioso também era um bocado arrogante, permanecesse a bordo, na condição de ajudante de cozinha.

Mas, antes, deixou bem claro a sua posição a respeito daquela atitude:

“Em uma expedição como esta, onde a comida é escassa, você será o primeiro a ser devorado” – disse Shackleton, em tom de falsa ameaça, claro.

Ao que o petulante Perce respondeu:

“Pois o senhor teria mais carne a oferecer”.

Secretamente, Shackleton gostou com o rapaz.

E a raiva inicial deu lugar a uma certa simpatia, que se materializaria dias depois, quando o comandante decidiu se divertir – bem como o restante da tripulação –, promovendo o “batismo” do jovem tripulante.

Perce foi amarrado à proa de um dos botes do Endurance e lançado no mar, no meio de um cardume de orcas.

Intrigados, os animais, também conhecidos como “baleias assassinas” (embora sejam da família dos golfinhos e só se alimentem de seres marinhos), rodearam o bote, emergiram diversas vezes bem ao lado do jovem marujo e chegaram a cheirá-lo.

Mas nada aconteceu, já que a carne humana não faz parte do cardápio das orcas.

Shackleton sabia disso – e por isso armara aquela brincadeira.
Mas Perce, não.

Ao ser trazido de volta ao Endurance, em meio a gargalhadas dos demais tripulantes, o jovem marinheiro ganhou um abraço de Shackleton e a sua definitiva admiração.

Ele estava, definitivamente, aceito como tripulante – o 28º daquela expedição, que, no entanto, fora planejada para ter só 27 homens.

E Perce era, de longe, o mais jovem de todos.

Sua função continuou sendo a cozinha, onde descascava batatas e ajudava a preparar a comida dos tripulantes.

Não era bem o que ele gostaria de fazer a bordo, mas, pelo menos, fazia parte da equipe de Shackleton – cujo objetivo era atravessar a pé o continente antártico, tornando-se assim o primeiro homem a fazer tal travessia.

Mais tarde, Perce teria motivos de sobra para se arrepender disso.

O primeiro sinal de que aquela viagem não seria nada tranquila veio quando o Endurance ficou trancado pelo gelo no Mar de Weddell, e, nove meses depois, teve que ser abandonado por Shackleton e seus homens, antes que rachasse e afundasse – o que, de fato, ocorreu logo depois.

Quando isso aconteceu, o estoque de comida da malfadada expedição já estava perigosamente baixo, o que levou Shackleton a ordenar a captura de focas, pinguins e o que mais surgisse pela frente.

Inclusive, os próprios cães que eles haviam levado para puxar os trenós na travessia inédita, que sequer começou.

Cabia a Perce cozinhar a carne, usando a própria gordura dos animais como combustível para o fogareiro, o que gerava uma espessa nuvem escura na improvisada cozinha do acampamento, montado bem ao lado do navio imobilizado, o que lhe rendia a cara permanentemente negra.

Apesar do purgatório de não terem para onde ir, e de saberem que ninguém viria resgatá-los, Shackleton e seus homens mantiveram o moral alto, e isso incluía seguidas brincadeiras com a aparência sempre enegrecida do jovem cozinheiro – então já transformado em uma espécie de mascote do grupo.

Isso aumentou ainda mais quando Shackleton decidiu que não haveria escapatória para o seu barco, e que, se eles quisessem continuar vivos, teriam que buscar a salvação por conta própria.

A única saída foi arrastar os pesados botes do Endurance até onde não houvesse mais gelo, e, dali em diante, remar até a Ilha Elefante, na ponta da Península Antártica, de onde Shackleton partiria com um pequeno grupo para buscar ajuda na distante Ilha Geórgia do Sul, a mais de 1 500 quilômetros de distância, onde havia uma estação baleeira – o que ele fez, naquela que é considerada a mais épica das jornadas da exploração antártica.

Só que, antes disso, o jovem Perce Blackborow voltaria a se tornar motivo de preocupação para Shackleton.

Ao deixar o Endurance, rumo à Ilha Elefante, Perce vestiu botas inadequadas – de couro, como as que usava no gelo, não as impermeáveis, como as que os experientes marinheiros calçavam quando sabiam que ficariam molhados – e isso fez com seus dedos dos pés congelassem durante a longa travessia.

Quando o grupo chegou à Ilha Elefante, após uma jornada estafante e desesperada, Shackleton até pensou em dar ao jovem grumete a honra de ser o primeiro homem a pisar naquela ilha, o que o tornaria uma espécie de descobridor daquele pedaço da Antártica.

Mas, aquelas alturas, Perce já sequer conseguia ficar em pé.
Por conta do frio e do contato permanente com o mar congelante, seus pés haviam se transformado em duas bolas escuras de sangue coagulado – e, por causa disso, um deles acabaria tendo que ser sacrificado.

Tão logo Shackleton partiu em busca de ajuda, nas Ilhas Geórgia do Sul, com cinco dos seus homens – e a promessa de que voltaria para resgatar o restante do grupo -, o médico da expedição decidiu que era preciso amputar todos os dedos do pé esquerdo de Perce, para que ele sobrevivesse.

A “cirurgia”, feita com materiais precários e usando apenas um pouco de clorofórmio como anestésico, durou quase uma hora, mas foi bem-sucedida – embora Perce tenha sofrido um bocado.

Enquanto isso, longe dali, Shackleton e seus comandados também comiam o pão que o Diabo amassou no furioso mar antártico.
Mas, ao cabo de 15 dias de uma aterrorizante travessia, conseguiram chegar à ilha e pedir ajuda.
Três meses depois, a bordo de um baleeiro chileno, Shackleton retornou à Ilha Elefante e resgatou o restante do grupo.

Todos estavam salvos.

Inclusive Perce Blackborow, o único com sequelas daquela viagem.

Quando retornou à sua cidade natal, na Inglaterra, Perce era outra pessoa.

Introspectivo e ainda mais arredio, ignorou até a pequena multidão que fora recebê-lo na estação e desembarcou pelo outro lado do trem, mancando fortemente, como passou a fazer, desde a extração dos dedos de um dos seus pés.

Mas o que seria um infortúnio para o resto da vida, acabou sendo, talvez, a salvação de Perce Blackborow.
Por conta da deficiência adquirida, ele escapou de ser convocado para a fase final da Primeira Guerra Mundial, que estourara justamente quando ele estava trancando no gelo da Antártica.

Foi o único aspecto positivo da intempestiva decisão daquele jovem marinheiro de embarcar de gaiato na mais dramática expedição antártica de todos os tempos.

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