Cinco anos atrás, quando a maré baixou, a praia de Santos, no litoral de São Paulo, revelou algo semienterrado na areia: uma fileira de intrigantes pontas de madeira.

Logo concluiu-se que fazia parte da estrutura de um antigo barco – que, em seguida sumiu, engolida pelo mar, para reaparecer outras tantas vezes depois.

Mas que barco era aquele?

Começava ali uma dúvida, que até hoje, cinco anos e algumas pesquisas depois, ainda não pode ser respondida com 100% de certeza, embora todas as evidências apontem na direção do mesmo barco: o veleiro-cargueiro inglês Kestrel, que sabidamente encalhou na praia de Santos, em 11 de fevereiro de 1895, e por lá ficou.

“Tenho 80% de convicção que são os restos do Kestrel, porque tamanho e localização do encalhe batem. Mas é preciso ter comprovação científica”, diz o pesquisador Sérgio Willians, presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Santos e ex-diretor da Fundação Arquivo e Memória da cidade, que baseia sua opinião sobre a identidade do barco graças a um antigo quadro.

A tela, pintada por Benedito Calixto, um dos grandes nomes da pintura brasileira do início do século passado e que viveu parte de sua vida em Santos, mostra um grande veleiro encalhado na beira de uma praia, mas foi erroneamente classificado como sendo o barco Caldbeck, no município vizinho de Praia Grande.

Aparentemente, não era.

Após comparar a paisagem ao fundo da tela com a topografia das praias dos dois municípios, Willians concluiu que aquela praia era a de Santos, e que o barco retratado só poderia ser o Kestrel – que, assim sendo, estaria aflorando na areia da praia, 126 anos depois.

A mesma opinião foi compartilhada pelo arqueólogo Manoel Gonzalez, do Centro Regional de Pesquisas Arqueológicas de Santos, que vinha acompanhando o surgimento gradual dos escombros desde 2017, quando os restos do barco apareceram pela primeira vez na praia.

E ele é ainda mais otimista na identificação do barco.

“Arrisco dizer que há 90% de chances de ser o Kestrel, mas é preciso escavar o local para comprovar isso. E é aí que começam os problemas, porque seria uma operação muito cara e complexa”, diz Gonzalez, que, ao mesmo tempo em que vibra com a descoberta de algo tão valioso para um arqueólogo, reconhece que não é nada fácil executar o trabalho de comprovar cientificamente a sua identidade.

“O local onde o barco está soterrado é extremamente ingrato, porque passa metade do tempo seco e outra metade debaixo d´água, por conta do sobe e desce das marés”, explica o arqueólogo.

“Seria bem mais fácil se ele ficasse o tempo todo submerso, porque aplicaríamos técnicas de arqueologia submarina. Mas com essa variação de ambiente, não dá para fazer nem uma coisa nem outra. É preciso, primeiro, construir um grande muro em torno dele, para reter o mar e permitir escavar no seco. E isso custa caro”, completa Gonzalez.

O centro de pesquisas arqueológicas dirigido por Gonzalez orçou em cerca de R$ 2 milhões os recursos necessários para escavar o casco soterrado, sendo que a maior parte desse dinheiro seria destinada a construção do tal muro para reter o mar em torno do achado.

“Parece um valor absurdo, mas é preciso considerar que estamos falando de construir uma barreira capaz de resistir a força do mar, com três metros de altura e outros três enterrados na areia, para que a água não infiltre também por baixo. Na prática, é como construir uma ilha seca no meio do mar, para que possamos escavar”, explica.

O custo do projeto gerou uma série de comentários irônicos dos moradores da cidade.

“R$ 2 milhões para desenterrar lixo na praia? Só pode ser piada!”, escreveu um deles, quando as primeiras notícias foram divulgadas.

“Sai mais barato construir outro barco”, acrescentou outro, dando coro aos indignados com a proposta de gastar tanto dinheiro para escavar os escombros de um velho barco.

“Não é nenhuma relíquia bíblica. É apenas um monte de madeira velha. Nada que uma retroescavadeira e algumas caçambas não resolvam”, resumiu outro morador.

Desde então – e lá se vão cinco anos… -, a área em torno dos restos do barco foi apenas cercada pela Prefeitura da cidade, impedindo o acesso de curiosos às vigas de madeira, e uma câmera de vigilância foi instalada para monitorar o local dia e noite.

Para a Prefeitura de Santos, o surgimento daquele barco enterrado na areia da praia virou um problema arqueológico, e, desde então, nada foi efetivamente feito para preservá-lo.

Porque ninguém sabe ao certo o que fazer com o achado.

O primeiro grande afloramento dos restos do barco, em agosto de 2017, não aconteceu por acaso.

Pouco antes disso, o canal de acesso ao porto de Santos havia sido dragado, o que provocou uma alteração na movimentação das areias nas praias da baía e fez aflorar a velha embarcação.

Hoje, por conta do sobe e desce das marés, os escombros somem e reaparecem na praia duas vezes ao dia.

E são cada vez mais visíveis.

“Quando começamos a estudar os escombros, só as pontas das vigas do casco ficavam à mostra. Hoje, algumas madeiras já estão meio metro acima da areia”, diz o arqueólogo Gonzalez, que brinca.

“Se pudéssemos esperar mais um século, talvez a própria natureza se encarregasse de escavar o barco para nós”.

O Kestrel era um veleiro de transporte de carga, com casco de madeira, três mastros e 60 metros de comprimento, que fazia a rota regular entre a Europa e as Américas.

Na sua última viagem, já havia descarregado no porto de Santos e estava ancorado, enquanto a maior parte da sua tripulação – inclusive o capitão – passeava pela cidade, quando uma tempestade, com fortes ventos, arrastou o barco para a praia.

A bordo, só havia o cozinheiro e dois marinheiros, que, estranhamente, recusaram a ajuda de um rebocador, que veio ajudar a deter o avanço do barco.

Isso, mais tarde, geraria suspeitas de que o encalhe poderia ter sido proposital, para o dono do barco receber o dinheiro do seguro, já que os navios movidos a vapor tinham tornado os veleiros-cargueiros obsoletos.

“Para mim, foi um golpe descarado e o objetivo da tripulação era destruir o barco, tanto que ele estava vazio, sem nenhuma carga”, especula o memorialista Willians.

“Isso enriquece ainda mais a história desse barco, se é que o que está na enterrado na praia são mesmo os restos do Kestrel”, completa.

Enquanto isso, mesmo sem saber o que fazer, a Prefeitura da cidade preferiu oficializar a identidade do barco e lucrar turisticamente com isso.

No início deste ano, mesmo sem ter comprovação 100% científica de que se trata realmente do barco em questão, a Prefeitura de Santos mandou instalar uma espécie de projetor de imagens na beira da praia, que permite aos visitantes, ao olhar para os restos semissoterrados na areia através do equipamento, visualizar o veleiro inteiro, como ele era antes de virar escombros.

O efeito ficou bonito e informativo.

Desde que – é claro – aqueles restos realmente pertençam ao Kestrel…

Mas, de certa forma, até a dúvida sobre a real identidade daquele barco passou a fazer parte do atrativo turístico para a cidade.

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Foto: Divulgação Prefeitura de Santos