O francês Jean-Jacques Savin tinha apenas 10 anos de idade quando leu o livro que Alain Bombard escreveu, contando como atravessara o Atlântico com um simples bote de borracha, praticamente à deriva.

E ficou tão impressionado com a façanha do conterrâneo que decidiu que, um dia, faria algo igual ou parecido.

Mas fez pior.

Em 22 de dezembro de 2018, já aos 71 anos de idade, Savin entrou em uma espécie de barril, feito de material resistente, mas sem velas, nem motor nem nenhum tipo de propulsão, em uma praia das Ilhas Canárias e se deixou levar pelo mar, em busca do seu sonho: atravessar o oceano da maneira mais natural possível, totalmente à deriva, empurrado apenas pelos ventos e correntezas.

Como uma rolha.

Algo que nem Bombard havia feito igual.

O barril-navegador de Savin, uma cápsula de três metros de comprimento por 2,10 m de diâmetro, continha uma cama, uma pia (alimentada por água dessalinizada extraída do mar, através de um processo manual que lhe custava 300 bombeadas para obter um litro de líquido potável), um fogareiro, um assento, um compartimento onde ele guardava o seu estoque de comida desidratada, uma portinhola de acesso e três janelinhas – uma delas no fundo, para ele que ele pudesse observar os peixes que passavam.

O próprio Savin, um pacato avô aposentado, mas com extenso currículo de atividades (entre outras coisas, fora paraquedista, piloto de aviões e guarda de parques de animais selvagens na África), projetara a engenhoca e marotamente o batizara de OFNI – iniciais de “Objeto Flutuante Não Identificado”, uma brincadeira com os OVNIs do espaço.

Mas não deixava de ser uma verdade.

Flutuando no mar, a esquisita cápsula de Savin parecia tudo – boia sinalizadora, tanque de combustível, objeto caído de algum navio -, menos um barco.

Até porque o francês passava a maior parte do tempo dentro dele, feito um viajante encapsulado, sendo levado pelo oceano para ele onde ele bem entendesse.

O começo da travessia foi bem difícil.

Embora Savin, que já havia atravessado o Atlântico em solitário quatro vezes, mas todas com barcos convencionais, tivesse escolhido um ponto de partida brindado por correntes favoráveis, os ventos em nada ajudaram.

Durante os primeiros 15 dias, o barril-navegador do ousado aventureiro francês foi empurrado muito mais do que deveria para o Norte, o que, logo de cara, o levou a concluir que sua empreitada, caso fosse bem-sucedida, levaria bem mais tempo do que os três meses que previra – e três meses era, também, o prazo máximo que seu estoque de comida suportaria.

Além disso, ainda não adaptado ao permanente chacoalhar da cápsula, já que ela não permitia nenhum tipo de controle, Savin passava dias e noites enjoado.

Mas ele não reclamava.

E mesmo que quisesse, não poderia mais dar meia-volta e retornar à praia.

“Não serei o comandante do meu barco e sim um mero passageiro do oceano”, havia definido o francês, antes de partir.

O desconforto durou duas semanas, até que o vento rondou e apontou na direção certa: a do Caribe, onde Savin pretendia chegar, de preferência na Martinica, uma ilha de colonização francesa.

As correntes mostravam que isso era possível.

Mas dependeria da boa vontade da natureza.

“No meio do oceano, sendo levado apenas por ele, não há regras nem ninguém dizendo o que você tem que fazer. Nem mesmo a sua mente”, escreveu Savin no seu diário de bordo – uma das poucas coisas que ele levava no seu barril flutuante, além de alguns livros de aventura (nenhuma tão ousada quanto a que ele próprio estava executando) e uma versão compacta da Bíblia – “porque”, como explicara antes, com bom humor, “para ler a versão original seria preciso atravessar um oceano maior que o Atlântico”.

De supérfluo a bordo da acanhada cápsula, havia apenas duas garrafas de vinho e uma latinha de foie gras, que Savin levara para comemorar duas datas especiais que passaria no mar: a chegada do Ano Novo e o seu 72º aniversário, que aconteceu menos de um mês após a partida – embora, para ele, idade fosse apenas um número, não um limitador do estado de espírito.

Flutuando a uma velocidade média entre apenas 2 e 3 km/h – bem menos do que uma simples pessoa caminhando -, quando a natureza ajudava, o francês conseguia avançar pouco mais de 50 quilômetros por dia, embora nem sempre na direção desejada. Mas ele não tinha pressa.

Nem poderia ter, dado o meio que escolhera para cruzar o oceano.

Mas uma coisa preocupava Savin, desde aqueles primeiros dias da travessia: o seu estoque de comida.

Quando ficou claro que, mesmo se alimentando espartanamente, sua comida não daria para toda a travessia, ele decidiu passar a pescar com mais assiduidade, embora os peixes fossem os seus únicos companheiros de viagem – e Savin adorasse tê-los por perto.

“A gente se apega a qualquer coisa quando está sozinho no mar”, escreveu também no seu diário, mas como uma simples constatação, não um lamento, já que, embora casado, ele sempre apreciara a solidão.

Tanto que decidira embarcar sozinho naquela aventura, sem nenhuma companhia no barril.

“Nem caberia”, explicou, com o mesmo bom humor, antes de partir.

A permanente preocupação com o estoque de alimentos fez com que um dos momentos mais felizes para Savin durante a travessia tenha sido o encontro acidental que ele teve com o navio americano de pesquisas Ronald H Brown, no meio do Atlântico, após 68 dias vagando à deriva.

Um tanto surpresos com aquela improvável embarcação, e sobretudo com a idade do seu único ocupante, os tripulantes do navio forneceram frutas e comida ao francês, que, no entanto, nem de longe demonstrou vontade de ser resgatado.

Ao contrário, com aquele suprimento extra, Savin ficara ainda mais confiante em seguir adiante, sendo levado apenas pelo próprio oceano.

A ajuda do navio foi providencial para o francês.

Mas foram também os navios as suas maiores fontes de dores de cabeça.

Por duas vezes, ele quase foi atropelado por eles.

Na primeira, Savin conseguiu fazer contato pelo rádio quando já estava prestes a ser esmagado por um petroleiro.

Na outra, teve até que disparar um foguete sinalizador para chamar a atenção do piloto – que desviou o máximo que pode, mas ainda assim passou a míseros 20 metros da cápsula inerte do destemido septuagenário.

O último contato de Savin com outra embarcação aconteceu no 121º dia da travessia, quando ele, novamente preocupado com o seu estoque de comida, pediu uma vez mais ajuda.

Desta vez, a um veleiro que passava, o Melchior.

Do comandante do barco, além de alimentos, ele recebeu também uma boa notícia: seus cálculos estavam certos e havia, sim, terra firme ali por perto.

No dia seguinte, uma ilha se materializou diante do barril errante do francês. Era St. Eustatios, uma das ilhas das antigas Antilhas Holandesas.

Ele havia conseguido.

Atravessara o Atlântico totalmente à deriva, dentro de uma cápsula flutuante, em um percurso de mais de 3 000 milhas náuticas.

Mas, por muito pouco, Savin não morreu na praia.

Literalmente.

Em torno da ilha de St. Eustatios, havia um perigosíssimo recife de corais, e o francês nada podia fazer para evitar o choque.

A única saída foi pegar o rádio e pedir socorro a Guarda Costeira, que, por sua vez, acionou o petroleiro americano Kelly Anne, que estava ali por perto.

O navio se aproximou, içou o barril do francês (que, uma vez a bordo, tomou o seu primeiro banho de água doce em mais de quatro meses) e, depois, desembarcou ambos no porto da ilha.

Antes de ser resgatado, porém, Savin pediu para dar o seu último mergulho no mar.

Queria se despedir dos peixes que o seguiam há dias e dar por terminada uma das mais improváveis travessias da História.

No dia seguinte, outro navio o levou até a vizinha Ilha de Martinica, onde sua esposa e alguns amigos o aguardavam.

Savin estava quatro quilos mais magro, mas nada mal para quem passara 122 dias dentro de uma espécie de rolha, boiando no oceano, ao sabor das ondas.

Nem Bombard havia feito nada igual.

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