O australiano Bill Hatfield já estava velejando sozinho há dezenas de dias, quando aconteceu a pior coisa que pode acontecer a qualquer velejador em solitário: ele caiu no mar.

Durante uma rotineira troca de velas, uma das pontas do cabo enganchou em um dos seus pés, o desequilibrou e ele desabou na água, sem colete salva vidas, quando navegava no meio do Oceano Atlântico, a mais de 200 milhas da terra firme mais próxima.

E o barco seguiu em frente, avançando, sem ninguém no comando.

Não poderia haver situação mais aflitiva, mas Bill não se desesperou.

Tratou de agarrar a primeira coisa que pode, no caso a própria ponta da vela, que também caíra na água, e foi avançando sobre ela, lentamente, até tocar o casco do barco em movimento.

Por sorte, o costado do seu barco, o veleiro L´Eau Commotions, de 38 pés, não era muito alto, e, num impulso mais forte, ele conseguiu tocar, com a ponta dos dedos, o convés.

E o agarrou com todas as forças que tinha.

Ficou, então, pendurado no casco, sendo arrastado pelo barco, e tentando suportar, apenas com os dedos (só nove, porque o médio da mão direita ele perdera anos antes), a força da água que passava rente ao casco. Era uma questão de vida ou morte.

Se soltasse as mãos ou cansasse, sua vida terminaria ali mesmo, no meio do Atlântico.

Mas nem assim Bill Hatfield se desesperou.

Da mesma forma como fizera ao avançar seu corpo, centímetro após centímetro, sobre a vela semi-submersa, Bill passou a deslizar a ponta dos dedos, travados em forma de ganchos, na direção da popa do barco.

Lentamente, uma mão de cada vez, foi se arrastando na lateral do casco que rasgava o mar ao sabor dos ventos.

Ele não podia ceder ao cansaço, embora estivesse com corpo inteiro praticamente suspenso no ar. Se soltasse os dedos do casco, jamais conseguiria voltar a alcançá-lo, à nado.

O drama durou um par de minutos, o que, para qualquer ser humano naquela situação, pareceriam ser uma eternidade.

Menos para Bill, dono de uma espantosa tranquilidade.

Até que, rastejando ao longo do casco, ele chegou ao espelho de popa e puxou o cabo que prendia a escadinha.

Só assim conseguiu voltar a bordo, apenas contrariado consigo mesmo.

Como alguém com a sua experiência poderia ter cometido um erro tão estúpido?

Cair de um barco em movimento no meio do oceano e conseguir voltar a bordo pelos seus próprios meios já seria uma façanha e tanto, não fosse um detalhe ainda mais extraordinário. Bill Hatfield já somava 80 anos de idade quando isso aconteceu, em agosto de 2019, durante uma travessia ainda mais ousada, sobretudo para alguém com aquela idade: a volta ao mundo em solitário, sem escalas, no sentido leste-oeste, contrário aos ventos predominantes, a pior rota possível para contornar o planeta pelo mar.

Aquela não havia sido a primeira vez que Bill experimentara a dramática sensação de cair de um barco em movimento em pleno mar aberto, e, ainda assim, sobreviver para contar o fato aos amigos, como se isso fosse a coisa mais natural possível.

Quatro anos antes, em 2015, ele vivera a mesma situação, durante a primeira tentativa que fez de circum-navegar o globo terrestre sozinho, pela mesma rota oposta à do bom senso.

Mas, também naquela ocasião, não foi a queda no mar (para ele, um mero contratempo) que o fez abortar a travessia, e sim os danos sofridos nos cabos que sustentavam o mastro do seu barco, logo após superar o último obstáculo do roteiro, o temido Cabo Horn – que, ainda assim, ele cruzou sem maiores queixas, apesar do massacre sofrido pelo veleiro.

No ano seguinte, Bill tentou novamente a mesma travessia, mas, desta vez, não foi longe.

Logo após partir da costa australiana, sua terra natal, ele deu de cara com uma brutal tempestade, e, de novo, com o barco danificado, não pode prosseguir.

O mesmo aconteceria na terceira tentativa, um ano depois, quando, já com 79 anos, seu barco também não conseguiu passar incólume pelo Cabo Horn.

Até que, em 8 de junho de 2019, Bill, já então considerado um dos mais determinados octogenários do planeta, partiu uma vez mais, disposto a finalmente rodear o planeta no sentido contrário aos dos ventos, para angústia de suas duas filhas e um neto já adulto – que, a cada partida, sempre julgavam ser a última despedida.

Mas não foi.

Oito meses e meio depois, após navegar exatas 30 555 milhas náuticas, dia e noite, sem parar, além de driblar três ciclones no mar, dois deles bem violentos, e sobreviver galhardamente a mais aquela queda no oceano, o ex-pescador Bill Hatfield, já com 81 anos de idade, realizou o sonho que alimentava desde que tinha apenas sete: contornar o planeta pela água, sem, em momento algum, tocar pedaço algum de terra.

E não apenas isso.

Para que sua circum-navegação fosse tecnicamente completa e inquestionável, ele fez questão de, além de cruzar todos os meridianos, aquelas imaginárias linhas verticais que dividem o planeta feito uma laranja, também navegar nos dois hemisférios, o que o obrigou a fazer até um desvio no meio do caminho.

No 92º dia da travessia, ao atingir o Atlântico, em vez de cruzar direto da ponta da África ao Cabo Horn, no extremo sul da América do Sul, caminho mais óbvio e curto, Bill dobrou a estibordo e subiu toda a costa africana, até além da Linha do Equador, que separa os hemisférios Norte e Sul.

Em seguida, fez meia volta e retornou, costeando todo o litoral do Brasil e da Argentina, até atingir o Cabo Horn, que – desta vez, sim – contornou sem nenhum imprevisto.

Salvo aquela queda no mar, que aconteceu justamente durante a navegação no Atlântico.

No dia em que completou 81 anos de idade, o homem que jamais se incomodou com a solidão no mar – ao contrário, sempre apreciou isso – navegava tranquilamente a 620 milhas de distância da terra firme mais próxima, a longínqua ilha de Pitcairn, no meio do Pacífico, o ponto equidistante mais isolado do planeta, onde qualquer eventual resgate seria impossível.

E comemorou isso no diário de bordo eletrônico que manteve na Internet durante toda a travessia – o mesmo no qual, meses antes, comentara, com extrema naturalidade e nenhum estardalhaço, aquela sua queda no mar.

Dias depois, ao cruzar a Linha Internacional de Mudança de Data, que divide o calendário do mundo entre hoje e ontem, Bill atrapalhou-se momentaneamente nas contas sobre a projeção de sua chegada de volta à Austrália, e, de novo, fez piada no diário de bordo sobre a sua estupidez – algo, no entanto, nem de longe verdadeiro.

Ao contrário, para passar o tempo durante a longa jornada, Bill se ocupou de estudos e raciocínios complexos sobre as leis da natureza e as dos homens, traçando comparativos entre ambas e, listando, através de observações mais do que práticas nos oceanos, o impacto que as ações humanas vêm causando ao planeta.

Para se alimentar durante tanto tempo sem nenhuma reposição de mantimentos, pescava.

Mas, caso não pegasse nada, racionava a própria comida. E, para beber, usava apenas água do mar dessalinizada.

Nada foi capaz de perturbar Bill durante a sua volta ao mundo em solitário.

Muito menos o risco de fazer isso aos 81 anos de idade.

Até que, 259 dias depois, na manhã de um sábado, 22 de fevereiro de 2020, Bill retornou ao mesmo ponto de onde partira, na costa leste da Austrália.

Na chegada, teve o cuidado de só ligar o motor do barco (que fizera questão de lacrar na partida, para não deixar dúvidas de que contornaria o planeta apenas velejando) após cruzar a entrada do mesmo iate clube do qual iniciara a viagem, oito meses e meio antes.

Com isso, tornou-se, também, o mais novo idoso a dar a volta ao mundo navegando sem escalas.

Mas o único a fazer isso pela pior rota possível.

“Para um jovem velejador, dar uma volta ao mundo em solitário no sentido leste-oeste já seria um feito notável”, resumiu o comodoro do clube, ao recepcionar Bill, na chegada. “Mas, para alguém que já passou dos 80 anos de idade, foi algo realmente extraordinário”.

Todo mundo concordou e aplaudiu.

Menos Bill, que não viu nada de tão incrível assim no que fez.

“Houve uma boa dose de sorte envolvida nessa travessia”, limitou-se a dizer. “A começar por aquela queda no mar”.

Em seguida, voltou para o barco, já planejando a próxima volta ao mundo.

E que ninguém duvide disso!

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