A bola, rosa choque, como convém a situações de mau gosto, era arremessada para dentro do tanque e, antes mesmo de tocar a água, devolvida, com uma certeira cabeçada.
A plateia, então, batia palmas.
Surgia, em seguida, um ridículo chapéu de palha, que também ia parar dentro d´água, onde era rapidamente vestido pelo artista, que com ele passava a desfilar em círculos, diante de um punhado de bocas abertas.
O próximo ato era com uma boneca – e a patetice continuava.
Um, dois, três…, e a pseudocriança já estava “salva” na margem do tanque que servia de jaula para o autor daquela façanha.
Por fim, ele executava uma série de piruetas, antes de receber a sua mais que merecida recompensa: uma sardinha descongelada.
Foi assim diversas vezes por dia, todos os dias, durante anos a fio.
Até que, um dia, a torturante rotina de Flipper, o último golfinho em cativeiro que o Brasil teve, começou, finalmente, a mudar.
Mas não necessariamente para muito melhor.
Em julho de 1967, o município de São Vicente, no litoral de São Paulo, ganhou uma atração turística que logo se tornaria a principal da cidade: o Oceanarium, uma espécie de circo marinho com um tanque de água salgada de 12 metros de diâmetro por 5 de profundidade, no qual aconteciam apresentações de focas e golfinhos amestrados.
Diversos animais ali se apresentaram, mas poucos sobreviveram por muito tempo naquele acanhado cativeiro.
Foi quando o dono do empreendimento, o francês Roland Marc Degret, incomodado com a excessiva rotatividade de animais – o que implicava em despesas frequentes para treiná-los – decidiu encomendar um novo golfinho para os espetáculos.
Mas com uma ressalva: teria que ser um filhote, porque, assim sendo, além de o transporte do animal até o tanque se tornar mais fácil, o investimento no seu treinamento valeria mais a pena, já que ele viveria por mais tempo – embora não muito, porque estudos já indicavam que, preso em cativeiro, a vida média de um golfinho girava em torno de apenas 12 anos, contra de 30 a 50 quando solto na natureza.
Degret montou uma pequena equipe e rumou para o local da costa brasileira de mais fácil contato com golfinhos da espécie nariz de garrafa, os preferidos em shows do gênero: o canal de acesso ao porto da cidade de Laguna, no litoral de Santa Catarina, onde havia diversos grupos desses golfinhos, lá chamados de “botos”.
Em Laguna, o empresário contratou um velho pescador local, Euclides Nunes, o Tido, para o serviço de captura de um filhote, entre os botos que habitavam o canal.
O escolhido foi um jovem macho, então com cerca de dois anos de idade – fase da vida em que começava a não mais depender da mãe, uma fêmea chamada “Dolores”, bastante famosa entre os pescadores da cidade, porque participava ativamente dos cercos aos cardumes de peixes, encurralando-os entre as redes, fenômeno típico da cidade.
Por conta disso, o filhote já semi-independente de Dolores seria uma presa relativamente fácil.
E foi mesmo – embora sua mãe tenha ficado rondando, desesperada, o cerco montado pelo pescador para capturar o filhote.
Em seguida, na calada da noite, o animal foi sedado, colocado na caçamba de uma picape revestida com uma lona e um palmo de água e levado para São Vicente, a quase 1 000 quilômetros de distância.
Era início de 1984, e começava ali o martírio do futuro golfinho “Flipper”, assim batizado porque este era o nome do mais famoso seriado infanto-juvenil da televisão, nos anos de 1970.
O objetivo era gerar confusão na cabeça das crianças, que imaginariam estar vendo, no tosco aquário de São Vicente, o famoso golfinho da TV americana.
O sucesso foi imediato.
Rapidamente, às custas de muitas punições e sofrimentos, o animal foi treinado a dar saltos, piruetas, empurrar bolas e bonecas com o bico, nadar de óculos escuros, cacarejar feito uma galinha e condicionado a fazer as coisas mais estúpidas, em troca de comida.
E virou a principal estrela da cidade.
Nem mesmo o ritmo de diversos shows por dia dava conta da quantidade de pessoas queriam ver de perto o “Flipper brasileiro”, nadando eternamente em círculos, naquele acanhado tanque de cimento, menor que uma quadra de vôlei – um sofrimento perversamente mascarado pela expressão facial dos golfinhos, que parecem estar sempre sorrindo.
Foram nove anos de cárcere fechado, obrigado a trabalhos forçados, diversas vezes por dia.
Até que, em 1991, sete anos após a captura do golfinho – e logo após o responsável pelo ato ter enriquecido e vendido o negócio para outro empresário da cidade -, uma ação pública, movida pelo ambientalista Márcio Augelli, então diretor de uma entidade de proteção de botos amazônicos, foi impetrada na justiça, pedindo a devolução do golfinho-espetáculo ao mar, com base na primeira lei brasileira de proteção animal, criada pouco antes.
Na ocasião, o juiz que julgou o caso não acatou os argumentos do ambientalista, e manteve o golfinho sob a guarda do empresário. Mas, com base em evidências de maus tratos, mandou fechar o Oceanarium e proibiu os espetáculos.
Foi ainda pior para o golfinho solitário.
Com o aquário fechado e sem o lucro dos ingressos vendidos à plateia, a vida de Flipper se tornou ainda mais sombria.
Sem treinadores nem cuidadores, o animal foi praticamente abandonado e passou a viver em um tanque cada vez mais imundo e insalubre, o que levou o ambientalista Augelli a agir novamente – desta vez, em uma esfera internacional.
A partir da denúncia feita por uma entidade que ele mesmo ajudou a criar,
a bem intencionada Associação dos Amigos do Golfinho Flipper, a WSPA – World Society for the Protection of Animals, maior sociedade protetora dos direitos animais no mundo foi acionada, e seus advogados recorreram, uma vez mais, à justiça brasileira, pleiteando a soltura do animal – o que, finalmente, foi acatado.
Quando isso aconteceu, e a justiça finalmente decretou a interdição dos shows, Flipper passava os dias e noites apático, visivelmente deprimido, boiado na superfície à espera de alguma companhia (o que lhe rendeu doloridas queimaduras de sol no dorso do corpo), dentro de um tanque de água cujo filtro estava quebrado, e, por conta disso, com uma espessa camada de fezes acumuladas no fundo – ele já nadava praticamente no próprio cocô.
Para disfarçar o problema, o dono do local mandava aplicar cloro na água, o que rendeu ao golfinho uma severa irritação nos olhos.
Além de conseguir judicialmente a devolução de Flipper ao mar (desde que arcando com todos os custos da operação, o que não deixou de ser uma boa notícia para o dono do então falido Oceanarium), a WSPA também contratou os serviços de um especialista na reabilitação de seres marinhos para a vida na natureza: o americano Richard Barry O´Feldman, mais conhecido como Ric O´Barry, um ex-treinador de golfinhos para espetáculos, que dizia ter “mudado de lado”, ao testemunhar a morte – segundo ele, por suicídio, ao se arremessar de encontro às paredes do aquário – de um dos animais que ele amestrava, no Seaquarium de Miami.
Saudado como o “salvador de Flipper”, O´Barry – que, no passado, também havia ajudado a treinar os cinco animais homônimos utilizados no famoso seriado – chegou ao Brasil sob as luzes dos holofotes, que ele tanto apreciava.
Suas primeiras medidas, no entanto, foram coerentes: mandou trocar toda a água do tanque, restaurou o filtro, planejou detalhes técnicos para o transporte do animal (sedativos, helicóptero, caixa úmida e uma maca forrada com uma espessa camada de espuma, para que os órgãos internos do golfinho não fossem esmagados pelos seus próprios 250 quilos de peso), e viajou para conhecer o local onde a soltura aconteceria: o próprio canal de acesso ao porto de Laguna, onde Flipper havia sido capturado, nove anos antes.
Ali, O´Barry mandou construir uma espécie de cercado, em uma das margens do canal, onde Flipper seria “reeducado à vida selvagem”, o que, na prática, significava apenas reensiná-lo a capturar o próprio alimento.
Em seguida, o americano retornou à São Vicente, para comandar a operação de remoção do animal.
Na despedida de Flipper do seu tanque-cativeiro, no dia 17 de janeiro de 1993, perto de 5 000 pessoas se aglomeraram diante do Oceanarium da cidade, para dar adeus ao golfinho que tanto os divertira naqueles patéticos espetáculos.
Algumas crianças até choravam, enquanto O´Barry se dividia entre entrevistas aos repórteres, poses para os fotógrafos, e uma ou outra ordem aos seus auxiliares.
No auge do espetáculo em que se transformara a remoção do animal, um grande helicóptero pousou bem ao lado do tanque, e Flipper, já sedado (e após receber a tatuagem de uma bandeira do Brasil na sua nadadeira dorsal, a fim de facilitar sua identificação quando fosse solto no mar), foi colocado sobre a maca e alocado dentro de uma espécie de caixa com água, para que sua pele não ressecasse durante a viagem.
Mas, na hora de embarcar, descobriu-se que a caixa era grande demais para a largura da porta da aeronave.
A solução foi cortar, ali mesmo, um pedaço da caixa, o que fez com que a operação completa levasse mais de duas horas.
Mas, no final, deu tudo certo.
Quando Flipper voltou a si, já estava dentro do cercado construído no canal do porto de Laguna, onde deveria passar um bom tempo, sendo treinado pelo americano para voltar a caçar o próprio alimento – um processo naturalmente lento, mas fundamental para garantir a sua sobrevivência futura.
Ocasionalmente, também passou a ser visitado, pelo outro lado da cerca, por outros botos, ocasiões em que Flipper emitia a sua “identificação”, um sinal sonoro agudo, que serve para os golfinhos se “apresentarem” uns aos outros.
Mas nunca ficou claro se eles pertenciam ao seu grupo familiar (já que, naquela época, a mãe de Flipper, Dolores, bem como seus irmãos, ainda estavam vivos) ou se eram apenas animais defendendo o seu território contra aquele “intruso” recém-chegado.
O´Barry começou a readaptação oferecendo peixes mortos à Flipper, como no acontecia no Oceanarium, uma vez que, após tantos anos de confinamento, ele havia autodesativado o seu sonar, capacidade que permite aos golfinhos se localizar e encontrar alimento no mar.
No tanque, a pouca distância entre o animal e as paredes fazia com que o som emitido por ele retornasse de forma violenta, o que o levou o golfinho a parar de usar o recurso.
Biólogos e veterinários acreditavam que aquela perda seria irreversível.
Mas eles estavam errados.
Logo, Flipper voltou a usar o seu sonar e, graças a isso, passou a detectar a presença de peixes vivos na água – quer dizer, quase isso, porque a princípio O´Barry atirava apenas peixes quase mortos e bastante lentos, a fim de se tornarem presas fáceis.
Na medida em que Flipper foi recuperando suas habilidades predadoras e fortalecendo os músculos atrofiados pelas limitações do tanque, o americano, já visivelmente incomodado com sua permanência em Laguna (e, principalmente, com os atrasos nos pagamentos feitos pela WSPA), passou a acelerar o processo de reintrodução do golfinho no mar.
Até que anunciou que já o considerava pronto para ser solto – uma decisão claramente precipitada, uma vez apenas 43 dias haviam se passado desde que Flipper saíra do cativeiro.
No dia escolhido para a soltura, diante de outra grande platéia e diversas câmeras de TV, O´Barry entrou na água, nadou até o cercado, removeu parte da cerca e, sempre seguido por Flipper, passou para o outro lado.
Houve uma chuva de aplausos.
Mas, a princípio, o golfinho ficou apenas indo e vindo na direção do cercado.
O americano saiu da água comemorando, e disse aos repórteres que aquele comportamento era normal, e que Flipper ficaria nas imediações do canal, até ser novamente aceito pelos grupos de botos da cidade.
Em seguida, fez as malas e foi embora.
Para sempre.
Durante as duas semanas seguintes, a previsão de Ric O´Barry, de fato, se confirmou: Flipper, facilmente identificável graças a uma marcação feita na sua nadadeira dorsal, com o formato da bandeira do Brasil, pouco antes da soltura, era visto com frequência na região, tentando interagir com os demais botos.
Mas, após isso, foi embora dali.
Dias depois, foi visto a quase 100 quilômetros dali, com alguns arranhões pelo corpo, sinal de que andara tendo encontros não muito amistosos com outros da sua espécie – ou que havia sido rechaçado pelos botos de Laguna, daí ter ido embora do canal.
Mais tarde, para surpresa dos especialistas, apareceu, sozinho – comportamento incomum entre os golfinhos -, na mesma região de São Vicente, a quase 1 000 quilômetros de distância, o que levou parte dos moradores da cidade a festejar que “Flipper havia voltado para casa” – e alguns chegaram mesmo a pensar em recapturá-lo.
Mas Flipper sumiu novamente.
Um ano depois, voltou a ser visto – sempre sozinho – naquela mesma faixa de mar do litoral paulista, para então só reaparecer no final de 1995, no interior da baía de Paranaguá, a mais de 400 quilômetros de distância tanto de São Vicente quanto de Laguna, onde nunca mais foi avistado.
Foi a última vez que se teve notícias do golfinho mais famoso do Brasil, menos de três anos após ele ser devolvido à natureza – e a maneira como isso foi feito contribuiu decisivamente para o semi-fracasso da operação.
Tivesse Flipper passado por um processo mais lento e paciente de readaptação, talvez estivesse nadando até hoje no mar da região – o que, pelo menos matematicamente, pela sua idade, ainda seria possível.
Mas ele nunca mais foi avistado, nem seu corpo jamais foi encontrado.
O mais provável é que Flipper tenha morrido logo após aquela última avistagem, baía de Paranaguá, vítima de fraqueza, doença, rejeição, depressão ou ataque de algum predador, quando ainda era relativamente jovem para um golfinho adulto.
Como consolo ficou apenas o fato de que, seja lá o que tenha ocorrido, aconteceu quando ele já estava solto na natureza, e não preso dentro de um tanque de concreto.
No infame aquário de São Vicente, o Flipper brasileiro, Último golfinho-escravo do país (depois dele, os espetáculos do gênero foram proibidos em todo o Brasil), poderia ter vivido mais tempo.
Mas privado do bem mais precioso a todos seres vivos: a liberdade.
Olhando por este prisma, talvez tenha valido a pena.
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