Até a década de 1940, os pescadores não eram reconhecidos como trabalhadores pelo governo brasileiro.
Não tinham sequer direito a aposentadoria.
Foi quando o líder de um grupo de jangadeiros do Ceará, Manuel Olimpio Meira, o Jacaré, como era chamado pelos humildes colegas, resolveu aprender a ler para poder escrever uma carta ao então Presidente da República, Getúlio Vargas, expondo sua indignação com aquela situação.
Mas Jacaré foi bem além disso e resolveu entregar a carta pessoalmente, no Palácio do Governo, no Rio de Janeiro.
E decidiu que iria até lá navegando com o seu próprio instrumento de trabalho, a jangada São Pedro, uma típica jangada cearense, feita de troncos de piúba, uma madeira que quanto mais molha mais resistente fica.
A empreitada iria repetir a travessia feita, 18 anos antes, por outros quatro jangadeiros, Umbelino dos Santos, Joaquim Faustilino, Eugênio Oliveira e Pedro da Silva, todos alagoanos, que foram de Maceió ao Rio de Janeiro com uma jangada também feita de troncos, a Independência.
Para a nova jornada, Jacaré chamou três companheiros: Jerônimo André de Souza, o Mestre Jerônimo, Raimundo Correia Lima, o Tatá, e Manuel Preto.
Eles partiram de Fortaleza em 14 de outubro de 1941 e, dois meses depois (61 dias, para ser mais exato), chegaram à então Capital Federal, onde foram recebidos pelo chefe máximo do país, a quem entregaram suas reivindicações – que, no entanto, logo caíram no esquecimento.
A extraordinária jornada da jangada São Pedro virou notícia também no exterior, onde chamou a atenção de um jovem cineasta americano, chamado Orson Welles.
Ele havia sido contratado pelo governo dos Estados Unidos para produzir um documentário sobre o Brasil, visando melhorar as relações entre os dois países, naqueles tempos de guerra, e decidiu incluir no filme a chegada dos bravos jangadeiros ao Rio de Janeiro.
Para isso, foi preciso refazer o desembarque do quarteto, na praia da Barra da Tijuca.
E foi lá que aconteceu o improvável: a jangada usada na filmagem virou na arrebentação da praia, e Jacaré, mesmo tendo passada a vida inteira no mar, desapareceu, a míseros metros da areia.
Seu corpo jamais foi encontrado.
Apesar da trágica morte do líder e amigo – e de não terem conseguido nada de efetivo por parte do governo na longa travessia até o Rio de Janeiro -, os jangadeiros cearenses voltaram confiantes de que deveriam seguir pleiteando os seus direitos, navegando, como forma de protesto e para chamar a atenção da sociedade, para lugares cada vez mais distante.
E assim fizeram.
Dez anos depois daquela primeira expedição, outra, do mesmo gênero, já então chamada pelos jangadeiros de “raid” (algo como “incursão”, em inglês, termo que eles passaram a usar de tanto ouvir o cineasta Welles falar durante as filmagens), levou outros cinco jangadeiros cearenses, entre eles o próprio Mestre Jerônimo, de Fortaleza à Porto Alegre, onde, mais uma vez, viraram notícia – sobretudo porque foram pedir que Getúlio Vargas, que era gaúcho, cumprisse o que havia prometido, uma década antes.
Mas, de novo, não conseguiram o seu objetivo.
Por isso, o raid seguinte foi o mais arrojado de todos.
Em 15 de novembro de 1958, Mestre Jerônimo e mais três jangadeiros, Luis Carlos de Souza, o Mestre Garoupa, Samuel Isidro e José de Lima, partiram de Fortaleza com o objetivo de chegar a outro país: a Argentina – que jamais havia visto uma jangada em suas águas.
A odisseia, de 6 000 quilômetros, também foi feita com uma jangada cearense de “seis paus”.
Ou seja, meia dúzia de troncos de piúva amarrados uns aos outros, cada um com sete metros de comprimento, e um feixe de madeira fincado entre eles, fazendo a função de mastro – que, apesar da aparência tosca, nada tinha de frágil, porque era feito da junção de diversas varetas flexíveis, permitindo que ele envergasse sem quebrar, como uma espécie de vara de pescar.
Batizada de Maria Teresa Goulart, em homenagem a esposa de João Goulart, na época vice-presidente do Brasil e visto como herdeiro político de Getúlio Vargas, com quem os jangadeiros vinham conversando há 17 anos sem conseguirem o seu intento, a jangada comandada por Mestre Jerônimo levou seis meses para chegar à Buenos Aires, onde foi recebida com um misto de surpresa e incredulidade – como uma embarcação tão primitiva e precária, que não passava de troncos de madeira amarrados com um pedaço de pano ao centro, poderia ter vindo de tão longe?
Naquela época, os argentinos nada sabiam sobre jangadeiros, uma classe de homens do mar que, numa hipotética graduação de bravura e resistência, sempre esteve bem acima dos pescadores convencionais.
Por isso, a imagem daqueles homens esfarrapados e encharcados chegando à capital argentina deu o que falar na cidade.
A façanha ficou ainda mais espantosa quando eles começaram a contar detalhes da longa e difícil jornada.
Como a tempestade de três dias e três noites que enfrentaram ao cruzar o litoral do Uruguai.
Até então, os quatro jangadeiros vinham cumprindo a rotina de navegar durante o dia, mas parar para dormir à noite, em alguma praia.
Na escala em Santos, no litoral paulista, chegaram a levar a jangada, por terra, até a capital de São Paulo, para uma homenagem que receberam do governador do estado.
Mas naquele trecho quase final da travessia, com o mar grosso e sob fortes ventos, não era mais possível parar para descansar em terra-firme.
O único jeito era se manter no mar e se afastar cada vez mais da costa, a fim de evitar que a jangada fosse arremessada de encontro às praias.
A rigor, navegar longe da costa não era exatamente um problema para aqueles homens, habituados a ficarem dias à fio no mar.
Mas as circunstâncias, sim.
As características do mar na região sul do continente eram bem diferentes daquelas que eles estavam habituados no Nordeste brasileiro.
A começar pelo frio, a temperatura da água e a intensidade do mar uruguaio, que fora potencializado por uma frente fria poderosa, que pegou os jangadeiros de surpresa, no meio da travessia.
Como sempre faziam, eles haviam partido de Chuí, o ponto mais extremo do sul do Brasil, levando um pequeno estoque de farinha e dois sacos de carvão, com o qual preparariam o pirão que acompanharia os peixes que iam pescando pelo caminho.
Os fósforos, para acender o fogareiro, iam debaixo dos chapéus, quase sempre a única parte seca do corpo dos jangadeiros.
Mas, com o mau tempo, ficou impossível pescar – que dirá cozinhar – na jangada.
Em determinado momento, ainda no primeiro dia daquele trecho da viagem, o mar invadiu a rasa embarcação, que normalmente já navegava semi-submersa, e levou tudo embora.
Os quatro jangadeiros só não foram arrastados para o mar porque, àquelas alturas, já haviam se amarrado ao mastro, como sempre faziam quando o tempo piorava demais.
Mas ficaram sem ter o que comer.
A situação era dramática.
Os ventos passavam dos 100 km/h e as ondas eram medonhas, beirando os dez metros de altura.
Mesmo assim, aqueles quatro homens, também como sempre faziam, jamais confrontaram a natureza.
Fiéis ao princípio básico de todo jangadeiro de que o segredo é não oferecer resistência ao mar e deixar as ondas passar, mesmo que por cima deles, apenas aguardaram, resignados, que tudo aquilo terminasse.
Ainda naquele primeiro dia, surgiu um navio, vindo na direção da jangada.
Era o cargueiro brasileiro Bandeirantes, cujo comandante, ao ver a situação em que se encontravam aqueles homens, que ele interpretou como sendo náufragos, mandou jogar galões de água e sacos de comida no mar.
Mas as ondas estavam tão altas que não permitiram que os jangadeiros recolhessem os mantimentos.
O drama continuou por mais dois dias, até que o mar, finalmente, amansou e ele retomaram o rumo da capital argentina.
Para avançar na direção de um destino para o qual jamais haviam ido, e sem nenhum instrumento de navegação, eles se guiavam apenas pelas estrelas e demais sinais da natureza.
Como as ondas, que também dentro da sabedoria intrínseca dos jangadeiros, sempre avançam na direção da costa.
Aqueles quatro homens eram fenomenais na arte intuitiva de navegar.
E foi graças a isso que chegaram a Buenos Aires, de onde regressaram, de avião, com passagens pagas pelo governo brasileiro – que, por fim, acabou cedendo ao justo pedido dos jangadeiros, reconhecendo os pescadores como trabalhadores.
Nunca antes uma jangada nordestina havia ido tão longe – uma façanha jamais repetida, feita por leões, muito mais do que simples lobos do mar.
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