Dez anos atrás, em novembro de 2012, o barco australiano de pesquisas R/V Southern Surveyor fazia um estudo sobre placas tectônicas entre a costa leste da Austrália e a Nova Caledônia, quando um detalhe chamou a atenção dos cientistas a bordo.
Embora os mapas do Serviço Geral de Batimetria dos Oceanos, uma entidade reconhecida até pela Unesco, indicassem a existência de uma ilha com 60 km2 naquela região, as cartas náuticas usadas pelo capitão do barco mostravam apenas água, e mais nada.
Intrigados, eles, então, resolveram consultar as imagens do Google Earth na Internet e ficaram ainda mais confusos.
No mesmo local onde o Serviço de Batimetria dos Oceanos exibia claramente uma ilha, identificada como Ilha Sandy (“Arenosa”, em português), e as cartas náuticas do barco exibiam apenas o mar a perder de vista, as imagens do Google Earth mostravam uma intrigante mancha negra, com o mesmo formato da suposta ilha, como se ela tivesse sido apagada da imagem original.
E foi isso mesmo que aconteceu, como os atônitos cientistas descobririam ao rumar para o tal ponto indicado nos dois mapas e constatar que não lá havia ilha alguma – embora o Serviço de Batimetria afirmasse que “sim”, e o Google Earth sugerisse um desconcertante “talvez tenha havido”.
Como uma ilha do tamanho de Manhattan, em Nova York, poderia ter desaparecido?
Como uma imagem de satélite podia ter mostrado algo que não existia?
Como confiáveis mapas podiam exibir tamanha discrepância?
Todas as perguntas convergiam para a mesma resposta: a Ilha Sandy jamais existiu
Naquele dia, a principal descoberta dos pesquisadores do R/V Southern Surveyor foi a “não descoberta” de uma ilha que boa parte do mundo julgava que existia.
Foi a partir daquela inequívoca constatação que começou o escândalo da “ilha que nunca existiu” – e que colocou o Google Earth numa saia justa danada.
Como explicar aquele constrangedor borrão no exato ponto onde alguns mapas indicavam haver uma ilha e a tripulação do barco australiano provou que não havia nada?
Como uma ilha inexistente poderia aparecer em uma imagem supostamente de satélite?
A única explicação possível é que se tratava um erro absurdo: a existência, em mapas e até nas imagens do Google Earth, de uma ilha que não existia. E isso em pleno Século 21!
O Google se esquivou como pode.
“Imagens do Google Earth provém de uma série de provedores e plataformas”, dizia o site da empresa, sem maiores detalhes – como se a polêmica tivesse sido gerada a partir de um mapa desenhado por mãos humanas, sabidamente falíveis, e não por imagens de satélites supostamente fidedignas ao que existe de fato no planeta.
Mesmo assim, o episódio ganhou o apoio de alguns especialistas, apesar da perplexidade geral dos cientistas.
“Os oceanos são gigantescos e, certamente, nós ainda não sabemos tudo sobre eles. E é por isso que ainda existem navios de pesquisa”, desconversou o oceanógrafo e cartógrafo americano David Titley, ao ser consultado sobre o constrangedor assunto.
Houve também quem lembrasse de uma antiga prática dos velhos cartógrafos, a de incluir algo fictício ou deliberadamente errado nos mapas a fim de desmascarar quem os copiasse, para justificar a presença de uma ilha onde não havia nada.
Neste caso, a armadilha teria se perpetuado nos mais diferentes mapas, e se transformado em uma “verdade”.
Mas o Serviço de Batimetria dos Oceanos e o Google não foram as únicas entidades que caíram na farsa.
Desde que fora “descoberta”, em 1876, pela tripulação de um certo barco baleeiro chamado Velocity, a “existência” da Ilha Sandy (que, depois, seria erroneamente confundida com outra ilha do mesmo nome, na mesma região – e esta real -, descoberta pelo lendário capitão James Cook, em 1774, o que pode ter gerado boa parte da confusão), passou a constar nos mais diferentes mapas, dando ênfase a patética lambança cartográfica.
No início do século 20, a “ilha invisível”, “ilha fantasma” ou “ilha que nunca houve”, como a Ilha Sandy passou a ser jocosamente apelidada após ser desmascarada a mentira geográfica, aparecia em todos os mapas da região, a começar pelas respeitadas cartas marítimas dos almirantados da Alemanha e da Inglaterra, que, na época, balizavam a navegação mundial.
Também constava nas plantas oceânicas do conceituado Instituto Britânico de Oceanografia, que serviam de base para outras tantas cartas náuticas, e nos mapas da prestigiada National Geographic Society, uma espécie de Bíblia geográfica do planeta, antes da era dos satélites.
E continuou assim por mais de um século.
Em 1982, a fictícia Ilha Sandy ainda constava nos mapas do Departamento de Defesa dos Estados Unidos, embora a Marinha da França já a tivesse removido, sem muito alarde, do seu departamento de hidrocartografia desde 1974, quando um voo de reconhecimento mostrou que no local indicado como sendo o da duvidosa ilha só existia o mar aberto, e com profundidades que passavam dos 1 300 metros – impossível, portanto, haver ou ter havido uma ilha ali.
Imediatamente, o Instituto Britânico de Oceanografia emitiu uma discreta errata (nenhum órgão queria alardear publicamente o erro grosseiro) e outros mapas passaram a classificar a suposta ilha com a sigla “ED”, de “existence doubtful” (“existência duvidosa”, em português).
Mas foi só quando os pesquisadores australianos constataram in loco que não havia nada no local onde a Ilha Sandy deveria estar, que a National Geographic Society e o Google a apagaram dos seus mapas.
E isso aconteceu menos de nove anos atrás.
De acordo com a crença mundial, a Ilha Sandy, que teria cerca de 25 quilômetros de extensão por cinco de largura, portanto, não tão pequena assim, ficava no nordeste do Mar de Coral, entre as ilhas (reais) de Chesterfield e Nereus, a meio caminho entre a Austrália e o território francês da Nova Caledônia, numa área particularmente remota do Pacífico Sul.
Mas, como ficaria inquestionavelmente provado, nas suas coordenadas indicadas nos mapas (19.22S e 159.93E) só havia água.
E nenhum sinal de que ali, algum dia, teria existido uma ilha.
Ilhas que surgem ou desaparecem não são obras de ficção.
A História e a geografia registram alguns casos, sempre ligados a fenômenos naturais, como erupções de vulcões e erosões causadas pelo mar.
Em pelo menos um caso, o da efêmera Ilha Sabrina, no Arquipélago dos Açores, aconteceram as duas coisas.
Em junho de 1811, a ilha surgiu do nada, a partir de uma erupção submarina, mas apenas três meses depois, desapareceu por completo, dissolvida pelo mar.
Mesmo assim, chegou a ser pleiteada pelos ingleses como um “novo território descoberto”, apesar de ficar em águas portuguesas – uma interessante história verídica, que pode ser conferida clicando aqui.
Contudo, nada disso aconteceu com a fictícia Ilha Sandy, embora ela tenha feito parte da cartografia mundial durante mais de um século.
A tese mais provável – e aceita pela ciência – para explicar a “existência” da Ilha Sandy no passado é que o que os tripulantes do baleeiro Velocity avistaram, em 1876, teria sido uma fenomenal aglomeração de pedra-pomes no mar, um tipo de rocha vulcânica que flutua, gerada por alguma erupção na região, que, quando vista de longe, poderia ter dado a impressão de ser terra firme.
Para reforçar esta tese, mais tarde, descobriu-se que havia um vulcão submerso adormecido no local onde até o Google dizia que a Ilha Sandy estava.
Mas não a própria ilha.
Foi um vexame generalizado, que entrou para a história do mundo da cartografia.
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