Neste momento, enquanto alguns bilhões de pessoas no mundo inteiro estão confinadas em suas casas, privadas de se movimentarem e sentindo os desconfortos do isolamento social e a insegurança gerada pelo risco da contaminação pelo Covid-19, um grupo de brasileiros não mudou em praticamente nada a sua rotina.
Seguem livres para sair de casa e se divertem em torno dela, com a certeza e a tranquilidade de que, mesmo fazendo isso, não correm risco de contrair o vírus.
Porque o local onde eles vivem é praticamente imune ao avanço do coronavírus.
Eles moram no mar, onde, pela própria característica do ambiente e completa escassez de pessoas, o vírus não consegue se espalhar.
E suas casas são barcos, que podem, inclusive, mudar de lugar, se surgir algum risco de o vírus chegar até lá.
“Nesse momento, estamos mais seguros do que qualquer brasileiro que viva em terra firme”, diz, com explícito alívio, o paulista Wladimir Popoff, que mora com a mulher, Rosane, em um veleiro, que geralmente fica ancorado perto das ilhas desertas da região de Paraty.
“Aqui, onde estamos, não há nenhum outro ser humano num raio de cinco quilômetros. E, se a gente quiser, dá para mudar a nossa ´casa` para ainda mais longe”, diz Wladimir, que se sente especialmente aliviado porque, tanto ele quanto a mulher, que já passaram dos 60 anos de idade, fazem parte do chamado “grupo de risco“ do vírus.
“Estamos naturalmente protegidos pelo mar”, diz Wladimir. “Só lamentamos não poder trazer para cá também os nossos parentes idosos, porque o espaço no barco é limitado”.
“Quem mora em um barco está menos preocupado, porque sabe que, se precisar, tem como escapar das áreas de contaminação, levando a casa junto”, diz a ex-enfermeira Guta Favarato, que, junto com o marido, mora em um veleiro. “Basta levantar âncora e ir para um local mais seguro, pelo menos por um tempo”.
O mesmo alívio de Wladimir, Rosane e Guta está sendo sentido, neste momento, por todas as pessoas que resolveram trocar uma casa por um barco e a vida em terra firme pelo mar.
Como o também casal Alcides Falanghe e Tatiana Zanardi, que, dez anos atrás, trocaram um apartamento em São Paulo por um veleiro no Caribe, no qual hoje moram e ganham a vida, recebendo e levando turistas brasileiros para passear nas Ilhas Virgens Britânicas.
“Quem mora num barco já vive um tipo de isolamento natural, porque não há nem vizinhos assim tão perto. Portanto, para nós, não mudou nada. Exceto a preocupação com os familiares, no Brasil”, diz Alcides, que é mergulhador e segue sua rotina diária sem nenhum contratempo, inclusive mergulhando no mar em torno do seu barco-casa. “Temos sorte de estar nessa situação”, admite.
Mas, com base na experiência adquirida pela estreita convivência do casal no pequeno espaço de um barco, a mulher de Alcides, a chefe de cozinha Tatiana, tem um conselho a dar às famílias, que, por conta da recomendação dos órgãos de saúde, agora tenderão a ficar os próximos dias confinadas, dia e noite, dentro de casa.
“É preciso ficar atento, também, à saúde mental das pessoas, porque nem sempre é fácil dividir o mesmo espaço com mais gente, o tempo todo”, diz Tatiana, com a autoridade de quem vive nos poucos metros quadrados do seu barco com o marido, há uma década. “Depois de certo tempo, a convivência tão estreita – e, ainda por cima, obrigatória – tende a deteriorar as relações familiares”, adverte.
“O segredo é fazer do limão uma limonada, e aproveitar o confinamento para pôr o papo em dia com a família, por exemplo,” aconselha Tatiana. “Quando o espaço é limitado e precisa ser compartilhado, é preciso haver tolerância e bom humor, porque não existe a válvula de escape de ir para as ruas, por exemplo. Por isso, quem mora num barco não briga, porque não tem espaço nem para evitar encontrar o outro dentro de ‘casa'”, brinca.
“Quem vive cercado pelo mar está, por si só, afastado das demais pessoas, portanto com menos chances de contrair o vírus nesse momento”, diz outro veterano no assunto, o velejador ítalo-brasileiro Elio Somaschini, de 71 anos, que já morou durante anos em veleiros e, neste momento, está na França.
Mas, ele acrescente. “Cedo ou tarde, todos irão pegar esse vírus, porque vai virar mais um tipo de resfriado. Mesmo quem vive no mar. O negócio é tentar fazer o vírus se espalhar o mais lentamente possível, para dar tempo de surgirem remédios, e o organismo humano criar anticorpos. Poucos morrem de gripe hoje em dia, mas muitos já morreram no passado, quando também foi epidemia”, analisa o experiente navegador.
Quem também pensa dessa forma é o casal Adriano Plotzki e Aline Sena, que moram em um veleiro há cinco anos, e até criaram um canal no YouTube, o Hashtag Sal, dedicado a quem, como eles, tem o mar como endereço.
“A gente sabe que, em algum momento, o vírus vai chegar até nós, mesmo passando temporadas isolados no mar”, diz Aline. “Mas também sabemos que, por enquanto, durante essa pandemia, podemos nos afastar da costa e, ao mesmo tempo em que nos protegemos, ajudamos a não disseminar ainda mais o vírus entre as pessoas”, analisa.
“De certa forma, quem mora no mar já vive um tipo de confinamento voluntário”, completa Adriano.
Essa opinião é compartilhada por dez em cada dez pessoas que optaram por morar em um barco, em vez de uma casa.
“É nessas horas que a gente vê as vantagens de ser um pouco mais autossustentável”, avalia a gaúcha Gergia Spiandorello, que junto com o marido, Diego, também mora em um veleiro, que, no momento, está nas distantes ilhas da Polinésia Francesa.
“Nesse instante, o nosso barco é o melhor lugar do mundo onde poderíamos estar”, diz Georgia. “Ainda mais na Polinésia Francesa, que, de tão isolada, mais parece que está em outro planeta”.
E ela completa: “Quem mora em um barco já está acostumado a não ter muito contato com outras pessoas e a prever recursos para ficar muito tempo vivendo no mar. Portanto, um isolamento se torna bem menos complicado”.
“Só não saímos ainda do apartamento e mudamos para o barco, porque ele ainda não está cem por cento pronto. Mas, diante desse quadro, não descarto essa possibilidade”, diz o capixaba Felipe Tessarolo, que junto com a mulher, a bióloga Giovanna, comprou um pequeno veleiro, no final do ano passado, com planos em transformá-lo na nova casa da família, que incluiu um enteado.
O barco, que ele mesmo está reformando nas horas de folga, está ancorado bem diante de Vitória, onde eles moram, em um apartamento alugado. Mas, como fica no mar, e não nas ruas, é bem menos suscetível ao contato com o vírus. “É o nosso plano de fuga”, diz Felipe.
Mesmo quem não pode sair do barco está se sentindo mais protegido dentro dele. É o caso do casal também gaúcho Bruna Sobé e Jairo Machado, cujo veleiro, no qual moram há oito anos, está retido em uma marina de Ushuaia, na Argentina, que fechou todos os seus portos, no início da semana.
“Não podemos sair daqui, mas ainda é mil vezes melhor estar no barco do que na cidade, onde, inclusive, ninguém pode sair de casa. Estamos presos na marina, mas de certa forma aliviados, porque, como ela está fechada, ninguém chega até o nosso barco”.
“De certa forma, estamos ´ilhados`, mas, ainda assim, em bem melhor situação do que se estivéssemos trancados em um apartamento ou morando numa cidade”, completa a mineira Christina Amaral, cujo barco também está retido na mesma marina em Ushuaia.
Em melhor situação está quem ergueu velas e saiu para o mar, antes de os confinamentos nos portos de diversos países serem decretados.
Como aconteceu com a família brasileira Quaresma Gandelman, pai, mãe e filho, de 12 anos de idade, que moram no veleiro Plancton, e estão navegando com sua casa-móvel entre as ilhas do Caribe.
“Saímos da Martinica um dia antes de fecharem o porto e, agora, estamos avançando, bem devagar, rumo a qualquer outra ilha onde seja mais seguro ancorar”, explica Cecília Quaresma, que é professora formada e transformou o barco-casa da família também em escola, para que o filho Igor siga estudando durante a viagem.
“Estamos tranquilos por estarmos protegidos contra o vírus no mar, e por termos estoque de alimento para ficar meses no barco, se necessário”, diz Cecília, que brinca: “Aqui, nem a escola do Igor parou”.
Ela, no entanto, tem acompanhado as notícias pela internet e teme pelos seus familiares. “De vez em quando, também somos tomados pela ´pandemia do pânico´, mesmo sabendo que estamos seguros no barco”, admite.
Já outra família que vive a bordo de um veleiro, os argentinos Juan Dorda, Constanza Coll e o filho Ulisses, de apenas dois anos, que estão há meses ancorados na Ilha Grande, no litoral sul do Rio de Janeiro, onde a rotina de passeios diários pelas praias desertas da ilha não foi alterada, tem outra preocupação nesse momento, embora compartilhem da mesma sensação de segurança, justamente por morarem em um barco: Constanza está no sétimo mês de gravidez e o plano original era ter o bebê em um hospital da região.
“Mas, agora, com essa corrida aos hospitais, que tende a gerar o caos, estamos começando a achar que pode ser mais seguro ter o bebê no próprio barco, como já nos sugeriram fazer”, cogita Constanza.
Que completa: “Não quero que meu bebê nasça em um ambiente de risco. Sei que fazer um parto em um veleiro não é o ideal, mas, no mar, pelo menos não há vírus”.