Nos últimos 36 anos, os Schurmann, a família navegadora mais famosa do Brasil, se habituou a viver dentro do pequeno espaço de um barco durante as longas viagens que já fizeram pelos mares – nada menos que três voltas ao mundo, entre outras travessias menores.

Também se acostumaram a passar longos períodos confinados dentro da cabine do veleiro onde moram, sem poderem sequer botar o pé para fora, durante as tempestades ou quando as condições do mar não permitem isso.

Ou seja, é uma família com larga experiência em confinamento.

Mas os Schurmann nunca haviam passado pela experiência que estão vivendo agora, por conta do coronavírus.

A começar pelo (raro) fato de que a família, que é uma espécie de símbolo da boa união familiar, justamente por passar tanto tempo junta e compartindo o mesmo espaço, acabou ficando dividida e separada, porque a pandemia, e o consequente confinamento, pegou os Schurmann de surpresa, justamente quando cada um estava em um local diferente – mas com planos de, em seguida, voltarem a se reunir para navegar juntos.

Só que não deu tempo.

Quando o confinamento começou a ser decretado nos países da América do Sul, uma parte da família Schurmann (o pai, Vilfredo, um dos filhos, Wilhelm, e nora, Erika) estava no mar, navegando na região das Ilhas Falkland, no Atlântico Sul, e outra parte (a mãe, Heloisa, outro filho, David, e os netos Kian e Emmanuel) em São Paulo, se preparando para ir ao encontro do restante da família, no barco.

“Ficou um pedaço da família no mar e outro em terra firme”, brinca Heloisa, que, por muito pouco, não ficou retida ainda mais longe, em Miami, onde estava até pouco antes de começar a quarentena, tratando de questões familiares.

“Eu passei por São Paulo e estava seguindo para as Falkland, para encontrar o restante da família e voltar com eles no barco, quando veio a quarentena. Daí, entrei na casa do meu filho e não sai mais, enquanto eles ficaram retidos lá, sem data para voltar. A família se dividiu, metade lá, balançando no mar, e metade cá, tentando fazer o tempo passar, até a gente poder voltar a se juntar”, diz Heloisa, que preferia muito mais estar no barco do que numa casa, em São Paulo. Sobretudo agora.

“No mar, você está infinitamente mais protegido do risco de contágio pelo vírus, porque não tem nem vizinhos. É o melhor lugar para se estar nesse momento delicado e pena que não estou nele também”, diz a mãe-navegadora, que não sabe quando voltará a ver o marido e o outro filho, que estão ancorados a milhares de quilômetros de distância do restante da família.

“Eles pensam em começar a voltar ao Brasil com o barco no final do mês, mas isso vai depender de muitas coisas, entre elas a reabertura dos portos do Uruguai e Argentina, que estão fechados para barcos estrangeiros. E você não pode sair para o mar sabendo que, em caso de necessidade, não terá onde parar”, explica Heloisa, que, por conta das longas viagens de barco, às vezes atravessando oceanos por semanas a fio, tem larga experiência em isolamento.

“A diferença é que, nas travessias com o barco, nós ficamos isolados por opção, não por dever e obrigação, como agora. Mas tanto num caso quanto no outro, é preciso ter paciência e aproveitar a reclusão da melhor maneira possível”, ensina Heloisa, que tem dedicado parte do seu tempo na quarentena justamente aos preparativos da próxima viagem/aventura da família.

“Será nossa quarta volta ao mundo navegando, desta vez para alertar para os problemas ambientais que estão afligindo os mares e que se chamará Voz dos Oceanos. Ela está prevista para começar em setembro, mas, agora, só se a pandemia deixar. Ou seja, quando esse isolamento terminar, vamos nos isolar novamente, só que no barco e todos juntos de novo”, diz a matriarca dos Schurmann, que costuma ser a única mulher a bordo nas longas viagens do veleiro da família, já que seus três filhos são homens. “Eles cresceram num barco e, agora, é a vez dos netos”, diz Heloisa, orgulhosa.

Mas não é só pela questão da segurança que Heloisa Schurmann preferia estar no barco da família em vez de trancada numa casa em São Paulo. É que, há muito tempo, o veleiro Kat, de quase 25 metros de comprimento, se tornou a sua casa de fato. Mesmo quando eles não estão navegando.

“No barco, eu me sinto em casa, porque ele é a minha casa, literalmente”, diz, enfática. “Moramos no mar há 36 anos e era nele que eu queria estar agora também, junto com a outra parte da família”, diz.

Já a outra parte da família Schurmann não se arrependeu de ter permanecido no mar, quando começaram a ser decretados os isolamentos no mundo inteiro.

“Estávamos prestes a voltar para o Brasil quando começou o problema. Daí, concluímos que, nessa parte das Ilhas Falkland, onde só vivem cinco pessoas, estaríamos muito mais seguros do que em qualquer outro porto”, explica o capitão Vilfredo Schurmann, que está aproveitando o tempo livre a bordo para finalizar um livro que está escrevendo sobre a expedição que a família realizou, tempos atrás, em busca dos restos de um submarino alemão afundando em Santa Catarina, na Segunda Guerra Mundial.

“Aqui, estamos naturalmente isolados e podemos fazer até caminhadas, porque não há ninguém por perto. Só ovelhas e pinguins”, diz Vilfredo, que, assim como a mulher, Heloísa, faz parte do chamado Grupo de Risco, já que ambos têm mais de 70 anos de idade.

As Ilhas Falkland, que no Brasil são muito mais conhecidas como Ilhas Malvinas, por conta da guerra entre Argentina e Inglaterra, em 1982, ficam isoladas no Atlântico Sul, a cerca de 1 000 quilômetros do extremo sul da América do Sul, e são um dos poucos lugares do mundo onde o coronavírus ainda praticamente não chegou.

Até agora, houve ali apenas dois casos suspeitos, mas envolviam apenas soldados da base militar inglesa que existe nas ilhas, e que já estão recuperados.

Mesmo assim, o controle tem sido intenso na única cidade das Falkland/Malvinas, Stanley, onde vivem apenas 2 000 pessoas – quase a população inteira das ilhas, já que o restante são áreas virgens ou ocupadas por imensas fazendas de ovelhas.

“Aqui nas ilhas, a todo instante, as pessoas ficam sendo avisadas pelo rádio para não saírem de casa, e no único supermercado só entram alguns clientes por vez, todos protegidos por máscaras. É muito seguro. Mesmo assim, preferimos ficar afastados da cidade e ancoramos numa região onde não há absolutamente ninguém por perto”, diz o comandante dos Schurmann, que, com a experiência de um velho lobo do mar, não se cansa de tranquilizar as pessoas.

“Em 36 anos de mar, já enfrentamos muitas tempestades. Mas as tempestades sempre passam. E essa também vai passar ”, diz o líder da família que é quase sinônimo de vida no mar.

Mas que, agora, tal qual todas as famílias, também está metade lá, metade cá.