Era sábado de carnaval.
Para descontrair os passageiros naquela longa travessia, que já durava 17 dias, foi organizado um baile a bordo.
A festa se estendeu até as primeiras horas da madrugada de domingo, 5 de março de 1916, quando, então, todos se recolheram aos seus camarotes, animados com a iminente chegada ao porto de Santos, prevista para as primeiras horas da manhã seguinte.
Mas o transatlântico espanhol Príncipe de Astúrias jamais chegou lá.
Um par de horas após o fim do baile, a viagem dos infelizes ocupantes daquele navio (cujo número exato jamais foi sabido, pois é certo que havia imigrantes clandestinos a bordo), acabou abruptamente numa laje submersa da ponta da Pirabura, na parte de fora de Ilhabela, no litoral de São Paulo.
A pedra rasgou o casco feito uma faca afiada, e o grande vapor foi para o fundo em pouco mais de cinco minutos – apesar dos seus 151 metros de comprimento.
Oficialmente, morreram (afogados ou arremessados pelo mar de encontro às pedras da costeira da ilha), 511 dos 654 passageiros e tripulantes.
Mas é certo que foram mais, bem mais, por conta não só dos clandestinos não contabilizados pela empresa dona do navio, como pelo hábito da época de só registrar os passageiros da Primeira e Segunda Classe.
Foi a maior tragédia no mar do Brasil de todos os tempos.
Uma espécie de Titanic brasileiro.
Até porque os dois desastres aconteceram na mesma época: a das grandes migrações para as Américas.
Em 17 de fevereiro de 1916, o luxuoso transatlântico Príncipe de Astúrias partiu de Barcelona com destino a Santos, Montevidéu e Buenos Aires, repleto de europeus, quase todos imigrantes que vinham tentar a vida na América do Sul.
Tripulantes e passageiros partiram assombrados pelos ataques que os navios vinham sofrendo na costa europeia, por conta da Primeira Guerra Mundial, e pelo fantasma do naufrágio do Titanic, apenas quatro anos antes.
Mas a travessia transcorreu sem nenhum incidente.
Ao passar pela linha do Equador, o navio cruzou com o seu irmão-gêmeo, o Infanta Izabel, da mesma empresa e que fazia a mesma rota, só que no sentido oposto.
E foi fotografado por alguns passageiros do outro barco.
Foram as últimas imagens do grande navio.
Uma semana depois, o Príncipe de Astúrias chegou à costa brasileira e foi descendo, rente ao litoral, a caminho do porto de Santos.
Já próximo a Ilhabela, numa área de mar abrigado, fez uma parada não prevista e alguns dos seus porões de carga foram abertos.
O motivo, segundo o comandante espanhol José Lotina, era realocar um carregamento de cortiça que havia sido colocado equivocadamente sobre mercadorias que teriam que ser desembarcadas no primeiro porto de escala do navio.
Alguns fardos de cortiça foram, então, removidos e deixados no próprio convés, detalhe que acabaria sendo a salvação de muitas vidas, no dia seguinte, o último da história do navio.
Mas era sábado de Carnaval, dia de festa a bordo, e nenhum passageiro prestou muita atenção naquela parada imprevista no litoral paulista, nem para o mar meio agitado, fruto de uma tempestade que se aproximava. Logo, o Príncipe de Astúrias retomou a viagem.
Não por muito tempo.
Por volta das três da madrugada, a tempestade desabou e a visibilidade despencou, justamente quando o navio navegava rente a face leste de Ilhabela, onde a grande concentração de minérios na terra costumava provocar pequenas variações nas agulhas magnéticas das bússolas dos barcos.
Não se sabe se por isso, ou se porque a tripulação estava um tanto perdida na rota, mas às 3h45 da madrugada o grande transatlântico atingiu em cheio a laje submersa da ponta da Pirabura, um obstáculo há muito conhecido, na ponta da ilha.
O impacto abriu um rasgo de mais de 40 metros no seu duplo casco de aço e o navio imediatamente começou a ser inundado.
Reza a lenda que os tripulantes da cabine de comando só visualizaram o perigo quando um raio da tempestade que se aproximava iluminou o mar revolto e revelou a fatal proximidade com a pedra.
– É terra? – teria perguntado, assustado, o comandante Lotina a um dos oficiais, antes de dar ordem de “ré a toda força” à casa de máquinas.
Mas já era tarde demais.
Um estrondo estremeceu o navio inteiro, despertando os passageiros para o pior dos pesadelos. Instantaneamente, o Príncipe de Astúrias começou a encher feito uma banheira, impedindo que muitos deles sequer conseguissem sair de suas cabines. Morreram afogados e trancados.
Os imigrantes clandestinos, que ocupavam a terceira classe, na parte mais baixa do casco, tiveram menos chances ainda.
Pouquíssimos escaparam com vida daquele turbilhão de água, potencializando ainda mais a tragédia, pois jamais se soube quantas pessoas, afinal, havia ali dentro.
Em contato com a água fria, as caldeiras explodiram e o navio inteiro ficou às escuras, dificultando ainda mais a desesperada busca por uma saída.
Só alguns tiveram tempo para vestir os coletes salva-vidas.
Em um par de minutos, o Príncipe de Astúrias começou a embicar de proa, ergueu a popa, e em menos de cinco desceu para o fundo.
Na escuridão, a força da água entrando arrancou uma criança dos braços do pai.
Desesperado, ele tateou ao redor e sentiu um corpinho se debatendo na água. Agarrou-o e saltou com ele para o mar.
Só depois descobriu que havia salvado um filho que não era seu.
Mas acabou virando.
A criança, que perdeu os pais na tragédia, acabaria sendo adotada por aquele pai desconsolado, que também perdeu a filha.
Os dois, porém, foram exceções naquela macabra noite de horror.
Nos poucos minutos que tiveram entre o ato de acordar e tentar escapar, os passageiros pouco ou nada puderam fazer.
Um homem foi visto esfaqueando um passageiro para tentar roubar o seu colete salva-vidas.
Outro tentou acabar com a própria vida usando uma arma, mas, de tão nervoso, errou todos os disparos.
Ao ver o navio irremediavelmente perdido, até o próprio comandante Lotina teria se matado.
Mas isso jamais foi comprovado – porque seu corpo nunca fui encontrado.
Apenas um bote salva-vidas foi para a água, porque saiu boiando, sozinho, quando o casco desapareceu debaixo dele.
Ao mergulhar, a chaminé incandescente do Príncipe de Astúrias transformou o mar ao redor em água fervente.
Alguns que sobreviveram ao afogamento morreram queimados, mesmo estando dentro d´água.
Para aumentar ainda mais o drama, chovia forte e o mar estava revolto no instante da tragédia, com ondas que arremessavam os sobreviventes de encontro às pedras da ilha, ali a míseros metros de distância.
Pouquíssimos conseguiram escalá-las; muitos morreram esmagados.
Minutos depois do choque, a superfície turbulenta do mar era uma mistura de restos do naufrágio, sobreviventes desesperados e corpos inertes ou dilacerados.
Não poderia haver cenário mais trágico.
Só escapou quem nadou no sentido contrário ao da ilha, a fim de evitar as pedras da costeira, ou deu a sorte de se agarrar a um dos fardos de cortiça que jaziam no convés do navio desde aquela parada não prevista – e que, graças a isso, saíram boiando na catástrofe.
O único bote salva-vidas logo se encheu de náufragos e começou a fazer viagens de ida até as águas menos furiosas de uma das reentrâncias da ilha, o Saco da Pirabura, onde os sobreviventes eram desembarcados.
O barco fez três viagens e resgatou mais de 100 pessoas – quase todas as que escaparam com vida daquele navio, que, por conta dos clandestinos, muito provavelmente levava bem mais do que as 654 pessoas registradas nos documentos.
Na manhã seguinte, o vapor francês Vega navegava entre o Rio de Janeiro e o porto de Santos quando estranhou a quantidade de detritos na água, ao largo de Ilhabela.
Preocupado, o seu comandante resolveu se aproximar da ilha e logo começaram a aparecer corpos.
E mais corpos.
Mais adiante, surgiu o heroico bote salva-vidas do Príncipe de Astúrias fazendo mais uma busca por sobreviventes.
Era o fim do pesadelo para os poucos que escaparam com vida do naufrágio.
Todos foram resgatados pelo outro navio.
Pelos números oficiais, até hoje contestados por todos que pesquisaram a fundo o naufrágio, morreram naquele acidente 511 pessoas e apenas 143 sobreviveram.
Destas, 87 eram tripulantes do navio, ou mais da metade da tripulação inteira. Já entre os passageiros registrados (os clandestinos, obviamente, não tinham como ser contabilizados), só houve 58 sobreviventes, o que ilustrou bem a perversidade da tragédia.
Como os passageiros dormiam no instante do acidente, não tiveram tempo de escapar do navio inundado.
Já a tripulação, que na maior parte estava em serviço, teve melhor sorte, justamente porque estava acordada.
No entanto, nos dias subsequentes, outros náufragos moribundos foram surgindo na região.
Três homens e uma criança foram dar na vizinha Ilha Vitória, a mesma onde o Príncipe de Astúrias fizera àquela estranha parada na véspera do naufrágio.
Já um grupo de dez pessoas atravessou Ilhabela quase inteira pela mata, até dar no seu único povoado.
E um grupo de náufragos ficou dias esquecido e sem nenhum recurso em uma das praias selvagens da ilha, que, por isso mesmo, acabaria sendo batizada como Praia da Fome, como é chamada até hoje.
É possível que outros sobreviventes tenham simplesmente tratado de sair o mais rápido possível da ilha e passado a viver anonimamente no país, caso dos imigrantes clandestinos.
Durante um bom tempo, uma avalanche de cadáveres continuou chegando às praias da de Ilhabela, para o horror de alguns caiçaras e alegria de outros, que passaram a saquear os mortos em busca de qualquer coisa que valesse dinheiro.
Só numa das praias da ilha, depois também devidamente batizada de Praia da Caveira, o mar devolveu quase 100 vítimas do Príncipe de Astúrias.
No Saco do Sombrio, redes trouxeram outros 150 – a quantidade de corpos que apareciam apenas confirmava a suspeita de que havia muito mais pessoas a bordo do que, mais tarde, diriam os documentos do navio. Era impossível saber quantos, afinal, haviam morrido.
Mas é certo que foi a maior tragédia da história da navegação no mar brasileiro.
Mesmo assim, só havia dois brasileiros a bordo.
Um sobreviveu, o outro, não.
O sobrevivente foi um jovem gaúcho, chamado José Martins Vianna, que voltava para casa, em Santana do Livramento, depois de uma temporada estudando na Europa.
Ele foi salvo por uma espanhola que também ajudou a recolher outros três náufragos da água – e, por isso, mais tarde recebida como heroína em Santos, para onde os sobreviventes foram levados pelo outro navio.
Já a mesma sorte não teve a brasileira Soyla da Silva, mulher do argentino Juan Mas y Pi, que desapareceu junto com o marido.
O casal viajava com uma missão especial: cuidar de 20 estátuas de bronze que estavam sendo levadas para a inauguração de um monumento em homenagem ao centenário da imigração espanhola em Buenos Aires.
Os dois desapareceram no mar, enquanto as estátuas desciam para o fundo, contribuindo para desencadear outro capítulo na história do naufrágio do Príncipe de Astúrias: a busca pelo que havia no interior do navio.
Além das estátuas e outras mercadorias, o Príncipe de Astúrias levava carregamentos de chumbo, cobre e estanho, além de um grande volume de bagagens dos passageiros, já que a maioria estava de mudança para a América do Sul e, portanto, viajava com todos os seus pertences mais valiosos.
Mais relevante que tudo, no entanto, era um carregamento, não declarado, de cerca de 11 toneladas de ouro, que, ao que tudo indica, havia no navio e estava sendo levado para a abertura de um banco na Argentina.
A fortuna fez faiscar os olhos dos exploradores de naufrágios, além de gerar outras teorias para a tragédia.
Uma delas é que, justamente por conta daquele ouro que transportava, o Príncipe de Astúrias estava fadado a não terminar aquela viagem.
O motivo teria a ver com a aquela estranha parada que o navio fizera, na véspera do naufrágio, nas imediações da Ilha Vitória.
Nela, sob o pretexto de realocar parte da carga, misteriosas caixas teriam sido retiradas do navio e passadas para um pequeno barco, que, em seguida, sumiu de vista.
O que elas continham?
Para muitos, as barras de ouro, numa manobra orquestrada pela própria empresa dona do navio, que passava por dificuldades financeiras.
Caberia, então, ao capitão Lotina impedir que o navio chegasse ao seu destino, a fim de ocultar o desvio da mercadoria.
Segundo os defensores desta teoria, talvez o objetivo fosse apenas encalhar o navio em algum ponto ermo da costa Sul do Brasil, evacuar os passageiros e dar o Príncipe de Astúrias como perdido.
Mas, ao retomar o rumo após aquela parada, a navegação teria sido prejudicada pela tempestade e agravada pela interferência magnética da ilha nos instrumentos, resultando numa tragédia não planejada.
Houve até quem defende-se que, no momento do naufrágio, o comandante Lotina não estaria mais a bordo, pois teria passado para o outro barco, juntamente com o ouro, mas isso é pouco provável.
Certo é que o Príncipe de Astúrias estava fora de sua rota habitual quando atropelou a ilha.
E jamais se soube por quê.
Em busca do tal ouro e do que mais que o navio transportasse de valor, mergulhadores-piratas logo começaram a agir no local do naufrágio.
Mas os primeiros a explorar o navio submerso o fizeram de maneira atabalhoada, explodindo partes do casco com dinamite.
Quase nada restou intacto.
Até porque, ao bater no fundo, o Príncipe de Astúrias se partiu em três partes.
Durante décadas, ao menos quatro equipes de mergulhadores fizeram expedições aos restos do navio, que até hoje repousam a uma profundidade entre 18 e 42 metros, numa área de fortes correntezas e baixíssima visibilidade – tanto que, de cada dez mergulhos, oito costumavam ser cancelados, porque os mergulhadores não enxergavam nada.
Oficialmente, eles tampouco encontraram nada de realmente valioso, embora um dos que tentaram, um aventureiro grego de nome Wlazios Diamantaraz, tenha estranhamente abandonado a ilha sem dizer nada, após alguns mergulhos no local.
A única exceção talvez tenha sido outro mergulhador grego radicado no Brasil e que acabaria por se tornar o mais ativo pesquisador sobre o Príncipe de Astúrias no pais: Jeannis Platon.
Depois de anos vasculhando o naufrágio com uma bem estruturada equipe de resgate (que contava até com um barco especialmente adaptado para isso), Jeannis conseguiu recuperar, entre outros objetos, uma das estátuas de bronze que seguiriam para Buenos Aires.
Ainda assim, um objeto de valor apenas cultural.
Mas, na época, já não havia muito o que vasculhar no casco destroçado e explodido do navio.
Os lingote de chumbo, as barras de estanho e até o gigantesco hélice, que de tão grande fora explodido e dividido em três partes, antes de ser erguido, já haviam sido derretidos e sumidos para sempre – bem como as supostas barras de ouro.
Na prática, o único legado deixado pelo Príncipe de Astúrias, além de uma dramática história, foi a construção, anos depois, de um farol na mesma ponta da Pirabura, para que outros navios não repetissem a sua tragédia – que, de certa forma, jamais foi totalmente explicada.
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