Na noite de 29 de janeiro de 2014, um homem barbudo, semi-nu e oscilando entre a euforia e o desespero, foi dar numa praia deserta do esquecido atol de Ebon, nas remotas Ilhas Marshall, num trecho particularmente ermo do oceano Pacífico.

E chegou contando uma história extraordinária: a de que cruzara o maior dos oceanos à deriva, sem água nem comida, levado apenas pelas correntes marítimas, a bordo de um barco que não passava de uma canoa de fibra de vidro, depois que o motor quebrou, na costa do México, a mais de 10 000 quilômetros dali, quase do outro lado do mundo.

Ele dizia que passara mais de um ano boiando no mar e sobrevivera graças a carne e o sangue de peixes, aves e tartarugas, que foi capturando pelo caminho.

Quando não chovia, aplacava a sede bebendo a própria urina.

E para se proteger do sol e das intempéries, passara a maior parte daqueles mais de 400 dias no mar curvado dentro de uma grande caixa de isopor, único abrigo que seu barco oferecia.

Nunca ninguém sobrevivera tanto na vastidão de um oceano, muito menos sem nenhum recurso, como aquele homem, o pescador salvadorenho Jose Alvarenga, dizia ter feito.

Uma história tão inacreditável de resistência e sobrevivência que muitos não acreditaram mesmo.

Até porque ela envolvia algo pior ainda: a morte de seu companheiro de infortúnio, após quatro meses de privações no oceano, o que lhe rendeu insinuações até de canibalismo, já que ele chegara em ótimo estado para quem passara tanto tempo de privações, naquela situação.

Para alimentar ainda mais as dúvidas, Jose passou um bom tempo sem revelar maiores detalhes da sua saga, o que só concordou em fazer seis meses depois, quando há muito já havia virado herói ou farsante.

E o que ele contou deixou o mundo ainda mais emocionado, a começar pela descrição que fez do dia em que o seu pesadelo, por fim, terminou – 13 inacreditáveis meses depois de ter começado.

Tudo aquilo começou um ano e um mês antes, na manhã de 21 de dezembro de 2012, na praia de Paredón, na costa oeste do México.

Naquele dia, o mar não estava bom e uma tormenta se aproximava.

Mesmo assim, Jose, de 36 anos, decidiu sair para pescar tubarões, como sempre fazia.

E chamou um jovem pescador para ir junto: Ezequiel Cordova, de 23 anos.

Os dois pegaram alguns apetrechos (entre eles, uma grande caixa de isopor, para estocar os peixes que capturassem) e partiram.

O barco era um simplório casco aberto de oito metros de comprimento, que não passava de uma grande canoa, sem nenhum conforto ou abrigo.

Apesar do mar grosso, a pescaria foi boa.

Na metade do segundo dia, Jose e Ezequiel já haviam acumulado quase 400 quilos de carne de tubarão a bordo.

Mas as ondas e o vento seguiam aumentando e convenceram a dupla a regressar para a costa.

Jose girou a chave de ignição e tentou dar partida no motor.

Nada.

Tentou de novo e nenhum sinal.

Seguiu tentando – três, quatro, dez, vinte vezes -, até que julgou prudente poupar a bateria para pedir ajuda pelo rádio.

Pegou o aparelho e chamou o responsável pela frota de pescadores, na praia.

Só conseguiu dizer que o motor havia pifado e soltar um palavrão.

A bateria fraca e a grande distância da costa não permitiram mais nada.

Os dois estavam a cerca de 70 quilômetros do litoral, com o tempo piorando a cada instante e, agora, sem rádio nem motor.

Era o começo de um longo – muito longo – calvário, que os levaria a viver a pior privação que um ser humano pode experimentar: a do completo isolamento no mar, sem água nem comida, sequer esperanças de sair vivo daquele suplício.

Durante quatro dias, a tempestade uivou e elevou o mar, sem clemência.

Por isso, as buscas por eles só começaram quando a tempestade perdeu força.

E, quando isso aconteceu, José e seu companheiro já estavam longe, levados pelas ondas e pelos ventos para o pior lado possível: o do mar aberto no Pacífico, o maior de todos os oceanos.

Dali em diante só havia água.

E mais nada.

Para piorar a situação, não restara nada dos 400 quilos de peixe que eles haviam pescado, porque a única maneira de evitar que o frágil barco fosse à pique na tormenta foi aliviando o seu peso e atirando ao mar todo o pescado, bem como o material usado para capturá-lo.

Nos primeiros dias, Jose e Ezequiel nada fizeram a não ser olhar para a imensidão do oceano, torcendo por um resgate.

Mas já estavam distantes demais para serem encontrados.

Na sua comunidade de pescadores, já eram dados como mortos.

Pelo menos, de vez em quando, chovia.

E os dois aproveitavam para matar a sede.

Mas, com o passar dos dias, Ezequiel entrou em profunda depressão.

Não queria nem mais beber água da chuva.

Jose, faminto e vendo o estado do amigo, resolveu por em prática algumas saídas para conseguir comida.

Astuto e habilidoso, ele logo aprendeu a capturar, com as duas mãos em forma de concha, peixinhos que acompanhavam o casco na sua lenta deriva.

Aprendeu, também, a agarrar pelas patas as aves que se aproximavam do barco, ficando para isso deitado imóvel no fundo do casco, feito um cadáver.

Com o tempo, além de peixes e aves, ele também desenvolveu técnicas para puxar pequenas tartarugas para dentro do barco, quando elas subiam para respirar.

Tanto pela carne quanto pelo sangue, ambos abundantes em gorduras e proteínas, as tartarugas logo se tornaram a principal fonte de alimento e sobrevivência dos dois pescadores.

Mas, logo, Ezequiel não conseguia mais engolir aquilo. E começou a definhar rapidamente.

No final de janeiro de 2013, já somava um mês que Ezequiel não comida nada.

Seu organismo não aceitava.

Só de sentir o cheiro fétido da carne das tartarugas e das aves, vomitava.

Com isso, se desidratava ainda mais.

Três meses depois, ele morreu, na mais completa inanição.

Até então, Ezequiel era uma valiosa companhia para José – alguém para dividir o medo e a solidão.

De vez em quando, os dois conversavam, para distrair a mente.

À noite, dormiam abraçados, para atenuar o frio, dentro da grande caixa de isopor, único abrigo que tinham.

Jose invariavelmente sonhava com comida e tinha horríveis pesadelos – que, ao acordar, continuavam, porque aquele tormento no mar era real e não apenas um sonho ruim.

Nada poderia ser mais desesperador do que aquele deserto de água salgada ao redor dele.

Dois dias antes de Ezequiel morrer, os dois haviam feito um pacto: se um deles sobrevivesse, contaria aos familiares do outro como foram os seus últimos momentos.

Mas, quando isso aconteceu, José manteve o esquelético cadáver do amigo a bordo por mais quatro dias, na insana esperança de que ele voltasse à vida.

Só então depositou o corpo do companheiro no mar.

Os tubarões deram conta do funeral.

A morte de Ezequiel perturbou Jose profundamente.

Não era apenas a perda de um amigo.

Erro fim do único elo que lhe restava com a humanidade.

Ficou sozinho naquele oceano interminável e isso fez com que passasse a desenvolver pensamentos suicidas.

Mas um pensamento veio à sua mente: era preciso sobreviver àquele tormento, para provar a existência de Deus.

Dias depois, ele avistou um navio no horizonte.

E vinha na sua direção.

Jose começou a gritar e gesticular, agradecendo a Deus.

Mas o navio passou reto – e tão perto, que, do convés, um dos marinheiros chegou a acenar para ele, como que retribuindo àqueles desesperados movimentos de braços.

Não era possível que alguém imaginasse que aquele homem estava ali, no meio do oceano, com um barco que era pouca coisa maior do que um bote, por pura vontade.

Mas foi o que aquele marinheiro deve ter pensado.

Enquanto isso, na distante Praia de Paredón, no litoral mexicano, um grupo de pescadores depositou flores no mar.

Fazia um ano que Jose e Ezequiel haviam sumido.

E mal sabiam eles que Jose ainda estava vivo.

No mar, Jose não sabia onde estava.

Mas sabia que avançava na direção de algum lugar.

Avaliava isso pelas mudanças na posição do sol.

Obsessivamente vasculhava o horizonte, em busca de ilhas e de nuvens, que trouxessem chuvas, para aplacar a sede.

Quando não chovia, como aconteceu durante cerca de três meses seguidos, a única saída era beber a própria urina.

Fez isso várias vezes.

O único consolo é que quase sempre havia o que comer: aves, peixes, tartarugas –

A carne dos bichos fornecia, também, algum tipo de líquido para o organismo.

Jose sorvia o sangue deles como se fosse água cristalina, e tratava de manter o próprio corpo sempre molhado, a fim de evitar a perda de líquidos pela transpiração.

Capturou tantas aves e tartarugas que perdeu a conta.

Peixes também.

Especialmente quando eles eram encurralados pelos tubarões, junto ao casco.

Só era preciso ser rápido, para puxá-los para dentro do barco antes que sua mão virasse comida dos próprios tubarões.

Em certo momento, Jose capturou tantas aves que passou a achar que havia terra firme por perto.

E havia mesmo.

Quando o dia 29 de janeiro de 2014 amanheceu, Jose mirou o horizonte e notou algumas manchas ao longe.

Pareciam coqueiros

E – sim! – eram coqueiros.

De uma ilha ao longe.

Seu primeiro impulso foi se atirar no mar e sair nadando.

Mas, com os pés inchados feito bolas de basquete, frito de tanto tempo balançando no mar, achou mais prudente esperar que a correnteza o levasse até lá.

Já era noite quando ele, entre eufórico e esgotado, chegou à praia daquele deserto ilhote, puxando o próprio barco, e desabou na areia, debaixo de um coqueiro.

Jose estava praticamente nu, só com uma esfarrapada cueca – a única peça de roupa que lhe restara.

Mas isso não importava.

Era a primeira vez em mais de um ano, que ele dormiria fora daquela caixa de isopor e sobre terra firme.

Exausto, praticamente desmaiou na areia da praia.

Quando o dia amanheceu, Jose ouviu galos cantando ao longe e pensou ser mais um dos seus frustrantes sonhos.

Mas os galos eram reais e cantavam na ilha vizinha, separada apenas por um estreito canal.

Jose fixou os olhos na direção do som e viu um casal.

Berrou com o que lhe restava de forças nos pulmões e, em seguida, desabou de joelhos na praia.

Não é que Deus o havia salvo?

O casal, único morador do ilhote vizinho, levou Jose para casa, deu-lhe roupas e um pedaço de papel, no qual ele rabiscou palavras desconexas (já que não falavam a mesma língua), mas que já fazia menção ao amigo morto no mar.

Em seguida, o casal foi procurar ajuda.

Cinco dias depois, chegou àquele ilhote das distantes Ilhas Marshall, a mais de 9 000 quilômetros da costa mexicana, uma lancha e levou Jose para a capital.

Antes de partir, ele doou o seu barco ao casal que o resgatara.

Até porque, nunca mais queria vê-lo.

Jose caminhava com dificuldade, porque seus tornozelos estavam flácidos e os pés, inchados.

Mas, no geral, estava em surpreendente bom estado.

Muito mais saudável do que deveria estar um homem que tivesse vivido o que ele dizia ter passado.

E isso despertou suspeitas de que, talvez, a morte do seu amigo não tivesse sido obra da natureza.

Ou, pior ainda, que Jose tivesse cometido canibalismo.

Era o início do segundo tormento na vida do pobre pescador: o da difamação.

Ao chegar a Majuro, Jose se viu cercado de jornalistas ávidos por detalhes que comprovassem aquela saga ou confirmassem a fraude – com ênfase especial na segunda hipótese.

Era difícil acreditar que um ser humano pudesse ter sobrevivido tanto tempo no mar sem nenhum recurso.

As próprias autoridades foram as primeiras a questionar o relato de Jose, dificultado pela barreira da língua.

Ainda fraco e mentalmente confuso (quem se recordaria de datas e eventos em uma situação em que todos os dias eram desesperadamente iguais?), Jose cometeu algumas contradições nos primeiros depoimentos, o que só fez aumentarem as dúvidas sobre a autenticidade da sua história.

Logo virou notícia no mundo inteiro, mas muito mais pela incredulidade do que pelo seu feito extraordinário.

De herói da sobrevivência virou uma espécie de farsante a ser desmascarado.

Jose, então, mudou radicalmente de atitude.

De alguém ansioso para contar o que sofrera, passou a não dizer mais nada.

Só queria voltar para casa e abraçar a mãe – aquelas alturas, tão perplexa quanto o resto do mundo.

Foi o grande erro de Jose.

Ao se negar a contar detalhes sobre o seu calvário, alimentou ainda mais as dúvidas sobre a veracidade da sua história e as circunstâncias da morte de Ezequiel.

Em uma das poucas vezes que quebrou o silêncio, disse apenas: “Deus sabe a verdade. Só Ele estava comigo naquele barco”.

Para ele, isso bastava.

Quando Jose retornou ao seu país natal, teve que ser hospitalizado.

Sofria de dores nas articulações e se sentia fraco, por causa de um parasita que se alojara no seu fígado, de tanto comer carne crua.

“Se tivesse ficado mais um mês no mar, ele teria morrido”, garantiu o médico que o atendeu.

Já a opinião pública ainda se dividia entre os céticos e os que consideravam Jose um fenômeno da sobrevivência.

Ele era, ao mesmo tempo, herói e suspeito.

Aplaudido e ofendido nas ruas.

Logo, porém, ficou claro que sua história era impressionante demais para ter sido inventada por um pescador humilde e praticamente iletrado.

Além disso, a ciência dizia que era perfeitamente possível alguém sobreviver tanto tempo no mar, usando como principal fonte de alimento e hidratação as tartarugas.

E que, graças à Corrente Equatorial Norte, uma espécie de rio que cruza o Pacífico, qualquer coisa lançada ao mar na costa oeste do México inexoravelmente chegaria às Ilhas Marshall, ao cabo de um ou dois anos de deriva.

Batia com o que ele dizia.

Mesmo assim, Jose foi intimado pela Polícia a passar por um detector de mentiras.

O aparelho confirmou que ele dizia a verdade.

Jose, então, fez o que prometera ao amigo morto: foi visitar a mãe de Ezequiel, para contar-lhe tudo.

Na saída, limitou-se a dar uma única resposta aos jornalistas, sobre as insinuações de ter devorado o amigo: “Porque eu faria isso se quase sempre tive comida?”.

E mais não disse.

Para ele, aquele longo pesadelo havia, finalmente, terminado.

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