No início do século passado, a Marinha do Brasil era considerada uma potência no continente sul-americano, pelos bons navios que possuía.
Um deles era o encouraçado São Paulo, de 20 000 toneladas, construído sob encomenda, na Inglaterra, e com um prestigioso histórico na corporação.
Logo na sua viagem inaugural, rumo ao Brasil, em 1910, coube a ele trazer o então presidente do país, Hermes da Fonseca, e, mais tarde, também os restos mortais do Imperador Dom Pedro II e da Imperatriz Tereza Cristina – além de ter participado da Revolta das Chibatas, movimento deflagrado pelos marinheiros contra o fim dos maus tratos e castigos físicos na Marinha Brasileira, e de ter atuado, como fortaleza flutuante na proteção ao porto de Recife, durante a Segunda Guerra Mundial.
No entanto, após quase meio século de serviços prestados, o então já defasado encouraçado estava obsoleto e ultrapassado.
Mas ainda em relativo bom estado, como mostrou sua última grande revisão, em 1948, quando foi colocado em dique seco e constatado que seu casco, de fundo duplo, permanecia intacto.
Como, no entanto, sua capacidade de navegação já estava limitada, o encouraçado São Paulo foi colocado à venda, e logo atraiu o interesse dos próprios ingleses, mas com outro objetivo: transformá-lo em sucata, já que nos anos pós-guerra a Europa sofria carência e escassez de aço.
O negócio foi fechado e ficou acertado que a empresa inglesa que comprara o navio enviaria dois rebocadores ao Brasil, para buscá-lo.
À Marinha do Brasil, que já vinha sucateando o encouraçado para manter funcionando as demais embarcações da corporação, restou apenas acabar de depenar o navio, retirando todos os seus equipamentos, inclusive portas estanques, caldeiras (que alimentavam a sua propulsão, ainda a vapor), e todos os armamentos, cujos vãos e orifícios no casco foram tapados com pranchas de madeira.
Mesmo assim, o serviço atrasou.
Quando dois rebocadores ingleses, o Bustler e Dexterous, chegaram ao Rio de Janeiro para recolher o navio, ele ainda não estava pronto para a sua derradeira viagem – e que seria a última de fato, porque o encouraçado São Paulo jamais chegaria à Inglaterra.
Com o passar dos dias, os comandantes dos dois rebocadores começaram a ficar aflitos com aquele atraso.
Eles pretendiam fazer a travessia, que prometia ser bem lenta, dado o tamanho da embarcação a ser rebocada, antes que começasse a temporada de tempestades de inverno no Atlântico Norte, o que geralmente acontecia a partir de novembro.
Sabiam também que não seria nada fácil rebocar um pesado encouraçado em mares agitados.
E passaram a pressionar os oficiais brasileiros encarregados da preparação do barco, estes sim habituados a um costumeiro atraso.
Até que, em 20 de setembro de 1951, bem mais tarde do que os comandantes ingleses desejavam, o encouraçado São Paulo ficou pronto e deixou o porto do Rio de Janeiro, puxado pelos dois rebocadores.
Dentro dele, iam oito tripulantes da equipe inglesa, encarregados de monitorar o comportamento do navio inerte durante a travessia.
As informações entre as equipes eram passadas através de um rádio portátil, já que o equipamento original do navio também havia sido retirado.
Por outro lado, foram embarcados dois pequenos barcos de apoio, coletes salva-vidas e duas dúzias de foguetes sinalizadores, para o caso de alguma emergência a bordo do navio a reboque.
Por muito pouco, a tripulação do São Paulo não ganhou também a companhia de uma família inglesa, pai, mãe e filho, desejosa de retornar ao seu país, mas sem recursos para comprar passagens.
Em troca da viagem, eles haviam proposto trabalhar a bordo, especialmente a mulher, que se ofereceu para a ser cozinheira do navio.
Mas, ao examinar o interior totalmente depenado do São Paulo, ela mesma mudou de ideia.
Foi a melhor decisão da sua vida, como ficaria tragicamente comprovado semanas depois.
O reboque do encouraçado foi feito através de dois longos e grossos cabos, cada um com 30 centímetros de espessura, e a velocidade do comboio, por questões de segurança, não passava dos cinco nós.
Tão lento que o comboio levou um mês e meio para atingir a metade do caminho, nas proximidades do arquipélago dos Açores.
E foi quando tudo aconteceu.
Até então, a viagem vinha sendo lenta, mas tranquila.
Mas, naquelas alturas do calendário, início de novembro, as condições climáticas no Atlântico Norte já haviam mudado bastante.
A suavidade do outono dera lugar às primeiras tempestades de inverno, e uma delas, bem mais forte que as anteriores, atingiu o comboio no início da tarde de 6 de novembro de 1951.
Rapidamente, a visibilidade foi piorando na mesma proporção em que as ondas aumentavam de tamanho.
E a operação de reboque foi ficando cada vez mais difícil, com o grande navio oscilando muito e dando apavorantes trancos nos cabos.
O São Paulo estava perto de ficar incontrolável.
No final da tarde daquele dia, quando já não era mais possível ver o encouraçado, por conta das altas ondas e da baixa visibilidade, os comandantes dos rebocadores fizeram contato, pelo rádio, com a tripulação do São Paulo, para saber como estava a situação a bordo.
Do navio a reboque, os oito homens relataram o desconforto gerado pela grande instabilidade do casco, comportamento que nem o enchimento dos tanques de lastro, para evitar que o navio balançasse excessivamente na viagem, conseguiu atenuar.
Foi a última vez que se teve notícias deles.
Em seguida, as condições de navegação pioraram ainda mais e os dois rebocadores passaram a ter extrema dificuldade em manter esticados os cabos que os atavam ao navio – sem falar no risco de uma colisão entre as embarcações.
Os trancos e solavancos eram apavorantes e começaram a causar danos em um dos rebocadores, o Dexterous.
Temendo o pior, o comandante do rebocador danificado mandou soltar o cabo do reboque.
Se não fizesse isso, havia o risco de o rebocador passar a ser puxado pelo encouraçado, em vez de puxá-lo.
E o resultado, muito provavelmente, seria o seu naufrágio.
Só que, ao soltar o seu cabo, toda a tensão foi transferida para o do outro rebocador – que, não suportou e rompeu.
Era o que faltava para selar o destino do encouraçado São Paulo.
Ele agora estava à deriva, descontrolado, entregue à própria sorte na tempestade e sem nenhum meio de propulsão capaz de permitir abordar as ondas com alguma segurança.
Era o seu fim.
O que exatamente aconteceu, nunca se soube nem jamais será sabido – porque tudo desapareceu no mar.
Quase que instantaneamente, aquele grande e poderoso navio foi engolido pelas ondas, ao que tudo indica numa só talagada, sumindo da superfície como num passe de mágica, levando junto os seus oito infelizes ocupantes.
Quando o comandante do Dexterous pegou o rádio para avisar os colegas do encouraçado sobre a decisão de soltar o cabo, já não houve resposta do outro lado.
Mas ele só compreendeu o por que daquele silêncio quando o comandante do outro rebocador o avisou, também pelo rádio, que o seu cabo havia rompido.
A explicação, então, só poderia estar na pior das hipóteses: o encouraçado havia afundado.
Imediatamente, o navio desapareceu dos radares dos dois rebocadores.
No mesmo instante, eles iniciariam as buscas, apesar do mar em fúria e do estado precário de um deles.
Do Dexterous e do Bustler foram disparados foguetes, na esperança que os tripulantes do navio respondessem da mesma maneira, com os sinalizadores que os havia a bordo.
Mas não houve nenhuma resposta.
Os dois rebocadores passaram a noite navegando em círculos, buscando algum sinal ou vestígio do São Paulo na superfície.
Nada encontraram.
Nem mesmo uma simples rolha que pudesse ter escapado de afundar junto com o navio – talvez, porque, como o encouraçado havia sido totalmente depenado antes da viagem, não houvesse mesmo muito o que se desprender dele.
Com a ajuda de aviões das Forças Aéreas da Inglaterra, Estados Unidos e Portugal, as buscas continuaram por mais uma semana.
Até que todos tiveram que admitir o improvável: mesmo tendo 17 compartimentos estanques, cujas funções eram justamente impedir naufrágios fulminantes, o encouraçado São Paulo havia sido tragado pelo mar, de uma só vez, como uma simples canoa.
O mais provável é que ele tenha adernado em demasia ao ser atingindo pelas ondas, após perder sua ligação com os rebocadores, e tombado, inundado, capotado e mergulhado.
Tudo isso em questão de minutos.
Mas, como um navio de 150 metros de comprimento poderia ter sido engolido inteiro em tão pouco tempo?
Para tentar responder esta pergunta, um inquérito foi instalado na Inglaterra e, três anos depois, o comandante do rebocador Dexterous foi levado a julgamento.
Pesava sobre ele a acusação de, ao tomar a decisão de soltar o cabo que atava o navio ao seu rebocador, ter entregue à própria sorte os oito tripulantes do São Paulo.
Os familiares das vítimas cobravam justiça e a investigação decidiu recuar no tempo, até quando o encouraçado ainda estava no Brasil, sendo preparado para a viagem.
Naquela ocasião, a decisão de extrair as portas estanques dos deques e tapar os orifícios dos armamentos no casco com meras placas de madeira chamou a atenção dos investigadores, que concluíram que as duas coisas poderiam ter contribuído para a inundação acelerada do navio.
Também deduziram que colaborou bastante para a tragédia o fato de a preparação do encouraçado ter atrasado, o que impediu que os comandantes dos rebocadores fizessem a travessia no período desejado, antes que começassem as tormentas de inverno, embora eles também tivessem falhado ao não adiar a viagem – o que, no entanto, traria sérios prejuízos financeiros a empresa que comprara o navio.
Quanto a decisão do comandante do Dexterous de soltar o cabo do reboque (que ele alegou só ter feito por temer o seu próprio naufrágio e por acreditar que um navio com aquele porte sobreviveria a tempestade, mesmo se ficasse à deriva), o júri não viu nada de irregular no procedimento e definiu que, “do contrário, a tragédia teria sido maior ainda”.
Por fim, o julgamento inocentou o comandante acusado e, depois de puxar as orelhas dos responsáveis brasileiros pela preparação do navio, concluiu que o que efetivamente levou o encouraçado ao naufrágio foi a sua incapacidade de realizar manobras num mar que exigia isso, acima de tudo.
Ninguém foi punido pela morte dos oito infelizes ocupantes do encouraçado São Paulo.
Nem lá, nem aqui.
Gostou desta história?
Ela faz parte dos livros HISTÓRIAS DO MAR – 200 CASOS VERÍDICOS DE FAÇANHAS, DRAMAS, AVENTURAS E ODISSEIAS NOS OCEANOS, Volumes 1 e 2, que podem ser comprados CLICANDO AQUI, com 25% de desconto nos dois livros e ENVIO GRÁTIS.
Quer ler outras histórias? Clique aqui
VEJA O QUE ESTÃO DIZENDO SOBRE ESTES LIVROS
“Sensacional! Difícil parar de ler”.
Amyr Klink, navegador
“Leitura rápida, que prende o leitor”.
Manoel Júnior, leitor
“Um achado! Devorei numa só tacada”.
Rondon de Castro, leitor
“Leiam. É muito bom!”
André Cavallari, leitor